Estante

Se fosse possível escolher uma única palavra para refletir a China contemporânea, talvez essa palavra seria “mudança”, em chinês “gaibian” (改变), a mesma que dá título ao célebre livro de Mo Yan1. Desde o início das reformas e da abertura do país, no final dos anos 70, a China passou por diversas transformações econômicas, políticas e sociais. Mudanças que despertam cada vez mais o interesse de estudiosos e leigos, que buscam compreender a China, interpretar seu avanço e sua expansão internacional.

O livro China Contemporânea – seis interpretações (Editora Autêntica, 2021) traz uma seleção de textos de diferentes autores que procuram justamente interpretar a China atual à luz de distintas perspectivas teóricas. O livro dá um panorama interessante sobre a realidade chinesa. Cada uma das análises parte de pontos de vista teóricos distintos e debruça-se sobre determinado aspecto da realidade chinesa atual, chegando a conclusões distintas sobre o “transformar” chinês, ora evidenciando seus avanços, ora suas contradições.

No texto que abre o livro, “A ascensão chinesa e a economia-mundo capitalista: uma perspectiva histórica”, Alexandre de Freitas Barbosa faz uma rica discussão sobre a China contemporânea a partir do resgate de autores fundamentais da perspectiva de análise dos sistemas-mundo, como Fernand Braudel, Immanuel Wallerstein e Giovanni Arrighi. O autor problematiza as tentativas de inserir a China em conceitos preestabelecidos, ou moldá-la em conceitos rígidos, procurando trazer novos elementos universalizantes que tornem possível situar as particularidades históricas do Ocidente e da China.

O autor recupera, por exemplo, o conceito braudeliano de capitalismo como camada superior, acima da economia de mercado, e também o debate sobre a “vitória ocidental”, apresentado por Arrighi em diversas obras. Ambos os resgates são interessantes para refletir não apenas sobre a trajetória histórica chinesa, mas também sobre a atual e complexa relação Estado e mercado no país.

O autor compreende que de fato a conceitualização braudeliana de capitalismo ajuda na interpretação da China atual, mas isso não significa que a o país milenar irá se adequar ao modelo ocidental capitalista, mas sim buscará transformá-lo à sua maneira. Interessa, segundo Barbosa, analisar os impactos da ascensão da China no sistema mundial, identificar as rupturas e a complexificação do sistema centro-periferia, dado que “não existe um sistema nacional, isolado ou em disputa com outros, mas posições estruturais no âmbito de um sistema-mundo, a unidade por excelência da compreensão do capitalismo.” (Barbosa, 2020, p. 37)

No segundo texto do livro, “Apontamentos sobre a geopolítica da China”, os autores Elias Jabbour e Alexis Dantas propõem uma síntese entre a Economia Política e a Geopolítica para interpretar a trajetória chinesa recente. A partir do conceito de “Nova Economia do Projetamento”, resgatado das formulações de Ignácio Rangel, os autores afirmam que na China estaria em um curso uma nova classe de formação econômico-social: o socialismo de mercado. Esse novo paradigma teria também um alcance externo, para o qual os autores recorrem ao conceito de “Globalização Institucionalizada pela China”, que se afirmaria como um contraponto à globalização neoliberal.

Se, de um lado, o conceito de “projetamento” ajuda na compreensão da ampla ação estatal chinesa operada desde o final dos anos 1970, e que moldou e vem moldando o avanço das forças produtivas em benefício de uma expansão industrial e produtiva de dimensões globais, de outro lado, o conceito me parece não ajudar tanto na compreensão das diversas contradições geradas por esse mesmo processo, entendidas não como parte de novas regularidades colocadas pela nova formação econômica-social, mas em sua centralidade, como resultado da luta de classes, e que podem desafiar a própria consolidação de uma possível trajetória socialista.

Se não, vejamos: se, como afirmam os autores, a contradição entre a análise e a realidade se impõe, além da ampla participação estatal que permanece na formação social chinesa, também é preciso apontar que as empresas privadas são muitas e de grandes dimensões, sua participação no 1% das maiores companhias por valor total agregado cresceu de 40% em 1998 para 65% em 2007 (Milanovic2, 2020). Além disso a taxa de participação das empresas estatais na produção industrial do país caiu de 50% em 1998 para 20% em 2015 (Zhang, apud Milanovic, 2020). Há também há um crescimento da participação da renda do capital nas mãos dos ricos, com a riqueza privada aumentando de 100% da renda nacional em 1980 para 450% da renda nacional em 2015. (Milanovic, 2020). Ainda, segundo John Smith3, a partir dos dados do World of Work Report 2011 (International Labour Organization), na China a parcela do trabalho na renda caiu em quase 10% desde os anos 2000. (Smith, 2016)

Apesar de toda capacidade de gestão e regulação estatal com relação ao sistema financeiro na China, por exemplo, é importante observar que há tanto um sistema paralelo que opera fora do controle estatal, como uma dinâmica financeira própria. Ao longo dos anos essa dinâmica seguiu uma lógica direcionada para a lucratividade e para a expansão também do capital privado chinês, com todas as contradições que isso pode representar, inclusive potencial formação de bolhas a partir de setores específicos, como o imobiliário, e a expansão de empresas como a Evergrande, atualmente em dificuldades de pagamento de dívidas gigantescas, com possíveis impactos negativos para toda a economia.

Os avanços do transformar chinês devem ser ressaltados amplamente, ainda mais em um contexto mundial marcado pela afirmação da hegemonia neoliberal e do império dos Estados Unidos. Mas suas contradições devem ser também colocadas como centrais, não apenas de uma perspectiva teórica, mas também na busca pela construção de uma alternativa ao capitalismo.

Isso é ainda mais fundamental quando se observa a forma como a China vem se projetando externamente e os impactos dessa projeção nos países periféricos. Aqui, particularmente me parece bastante complicada a visão dos autores, ao recorrerem ao conceito de “Globalização Institucionalizada pela China”. Os autores afirmam que estaria em curso uma espécie de globalização ao estilo chinês, que se contrapõe à presente globalização neoliberal. Essa globalização do tipo chinesa é explicada no texto por alusões a determinados elementos da formação histórica do país, tais como a existência de princípios igualitários; uma forma primitiva de Estado Desenvolvimentista; uma relação do homem com a natureza baseada no trabalho necessário menor. Todos esses elementos teriam permitindo a construção de subjetividades e filosofias de cunho civilizatório e tolerantes, diferentes das ocidentais, de caráter imperialista e violento.

Não se trata de desconsiderar os elementos da formação histórica chinesa como base para uma teorização sobre sua política externa atual, mas me parece importante evitar partir do princípio de que a China assumirá uma postura diferente da Ocidental, apenas devido à sua formação histórica baseada em princípios milenares. A partir do momento em que a China se insere no capitalismo internacional, promove um processo de acumulação interna e disputa esferas de influência por todo o globo, é preciso analisar concretamente como ela vem conduzindo suas relações com outros países, para além do discurso oficial de ascensão pacífica e cooperação e de seu histórico. A expansão das empresas chinesas, estatais e privadas, mediante aquisição de empresas nacionais, exploração maciça de recursos minerais, por exemplo, vem causando diversos impactos, econômicos, sociais e ambientais4. A complexidade e a amplitude do Belt and Road Initiative, por exemplo, apontando também no texto de Jabbour e Dantas, têm suscitado diversas críticas quanto aos impactos que o projeto vem causando nos países envolvidos. Entre elas se destaca a possibilidade de aumento das dívidas5, contraídas por empresas de países pobres a partir de instituições financeiras chinesas e problemas ligados à degradação ambiental nos projetos do BRI6.

É exatamente sobre as contradições ambientais que se debruça Luiz Enrique Vieira de Souza, em seu texto no livro, intitulado “Civilização ecológica ou colapso ambiental”.

O autor apresenta os avanços que a China vem empreendendo ao ampliar as leis de combate a degradação ambiental, assim como o aumento da participação da China em acordos sobre o clima e o avanço em termos de compromissos do governo com um desenvolvimento com menor impacto ambiental. Ao mesmo tempo o autor aponta as diversas contradições desse processo, por exemplo, a forma como o governo chinês muitas vezes ignora, reprime ou não atende os protestos ambientalistas dentro da China. O autor traz um debate teórico fundamental sobre o conceito de “civilização ecológica”, que tem ganhado centralidade dos debates internos do PCCh. Embora a China venha avançando no alcance das metas ambientais, e apesar das incontáveis modernizações ecológicas, a população chinesa continua submetida a níveis altos de poluição, além disso, uma grande quantidade de terras na China está contaminada ou em processo de erosão devido ao processo de industrialização e dos grandes projetos. Os vetores da degradação ambiental, segundo Souza, ultrapassam os limites da própria China, na medida em que o país expande seus processos produtivos e comércio com diversas partes do mundo, o que coloca o debate sobre o impacto ambiental também em termos do caráter da projeção chinesa no mundo e as contradições do socialismo chinês.

O livro conta ainda com texto de Wladimir Pomar, “Comentários sobre a Economia Política chinesa”, no qual faz uma recuperação da trajetória da construção nacional da China, desde os desafios do início do século 20 em termos do desenvolvimento econômico, até as metas atuais de modernização energética, que vêm sendo buscadas pelo partido. Embora o texto faça uma boa recuperação histórica, ressaltando a economia política marxista na China e seu papel para o desenvolvimento, me parece faltar uma maior complexificação das disputas em torno da ideia de desenvolvimento das forças produtivas como essência do socialismo. Como se sabe, ao longo da construção do socialismo na China, existiram embates profundos dentro do partido a cerca das controvérsias do desenvolvimento das forças produtivas e do desenvolvimento das relações sociais de produção. Essas controvérsias moldaram as disputas na China, pelo menos até a morte de Mao, e não foi também sem uma ampla disputa interna dentro do partido que se definiu, a partir de Deng, o caminho do desenvolvimento das forças produtivas, não como opção ou pacto nacional, mas como disputa interna.

No texto “Crise de hegemonia e rivalidade EUA-China”, Bruno Hendler faz uma discussão interessante sobre a China contemporânea a partir da análise das disputas entre EUA e China, partindo da teorização de Giovanni Arrighi acerca das hegemonias e ciclos sistêmicos. Para além de aplicar mecanicamente o instrumental teórico de Arrighi, Hendler avança na observação dos contextos históricos e realidades concretas que moldaram a ascensão dos EUA e que agora moldam uma possível ascensão chinesa. O autor traz dados sobre a atual ascensão chinesa dentro de seu contexto histórico, para ponderar sobre uma possível ascensão hegemônica chinesa. Embora a ascensão chinesa apareça como uma ameaça à hegemonia estadunidense, a disputa não significa necessariamente em uma transição de hegemonias, dados os limites da ascensão chinesa com relação a diversos aspectos, como a difícil inserção internacional de sua moeda, o renmimbi, ainda mais em um contexto de padrão dólar-flexível.

No texto “Simultaneísmo e fusão na paisagem, na cultura e na literatura chinesa”, Francisco Foot Hardman traz um belíssimo ensaio em que analisa a China contemporânea a partir de sua cultura, procurando mostrar as possibilidades de aproximações entre China e Ocidente, mais do que as diferenças. O autor recupera brilhantemente a obra do escritor Mo Yan e do cineasta Jia Zhangke.

E talvez seja mesmo a partir da literatura e do cinema que se possa vislumbrar em toda sua dimensão esse “mudar” chinês. Nas últimas décadas o que se observa na China não são apenas gigantescas transformações econômicas, mas rupturas e mudanças que afetaram os chineses de uma forma difícil de ser captada. Essa percepção individual e coletiva está presente de forma riquíssima na literatura e nas memórias de Mo Yan, seu passado rural, segundo Hardman, “o produto de uma experiência pessoal e comunitária incontornável, que se transforma em experiência literária verossímil na sua plenitude dramática e na sua realidade “local, nacional transnacional”.

As cenas de um grupo de jovens amigos, em Plataforma, de Jia Zhangke, vivenciando suas experiências de amizade e amores na vida coletiva na comuna, contrastam absolutamente com a busca de cada um para se colocar profissionalmente no mundo que se abre com a dissolução das comunas, com as reformas e as privatizações. Cada um em busca de seu lugar em uma China totalmente diversa daquela em que nasceram.

Passado, presente e futuro parecem se encontrar na China contemporânea. A memória das experiências coletivas rurais, a desigualdade e os avanços do presente e a propagada promessa de um futuro próspero e harmônico. Pode residir aí nosso grande interesse em desvendar esse país milenar.

Valéria Lopes Ribeiro é professora adjunta do Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do ABC (UFABC). Professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Mundial (EPM/UFABC) e do Mestrado em Relações Internacionais (PRI/UFABC). Professora do Bacharelado em Relações Internacionais e do Bacharelado em Ciências Econômicas (UFABC)