Estante

Muitos caminhos, Uma estrela“A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la.” A epígrafe de Viver para Contar, autobiografia do consagrado escritor colombiano Gabriel García Márquez, expressa bem o espírito das doze entrevistas reunidas em Muitos Caminhos, Uma Estrela: Memórias de Militantes do PT. O livro, organizado pelos professores Alexandre Fortes (UFRRJ) e Marieta de Moraes Ferreira (UFRJ e CPDOC/FGV), é o primeiro resultado público do Projeto de História Oral do Partido dos Trabalhadores, uma parceria do Centro Sérgio Buarque de Holanda – Documentação e Memória Política da Fundação Perseu Abramo com o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas (CPDOC/FGV).

Desde 2005, os integrantes desse projeto já realizaram 22 longas entrevistas, utilizando as metodologias e técnicas da história oral, com antigos militantes e dirigentes do partido. Doze delas foram selecionadas para compor este primeiro volume do que, se espera, será uma série de publicações com o mesmo perfil. Várias das matrizes políticas e sociais que deram origem ao PT estão representadas nas entrevistas reunidas no livro. Depoimentos de sindicalistas urbanos (Djalma Bom, Olívio Dutra, Luiz Dulci, Paulo Rocha), rurais (Avelino Ganzer, Manoel da Conceição), intelectuais (Antonio Candido), militantes de organizações de esquerda anteriores (como o mitológico Apolônio de Carvalho em uma de suas últimas entrevistas) e posteriores ao golpe de 1964 (Hamilton Pereira e Raul Pont), bem como ativistas de movimentos populares (como Irma Passoni e Benedita da Silva) nos fornecem um quadro bastante multifacetado e rico, em particular dos debates da esquerda e da ação dos movimentos sociais nas décadas de 1970 e 80.

Os depoimentos oscilam em tamanho, abrangência e profundidade, mas no geral compõem testemunhos primorosos e fascinantes, não apenas da trajetória de formação e consolidação do PT, mas da história política, social e cultural brasileira nas últimas décadas. A opção de selecionar entrevistados de diferentes regiões do Brasil (embora o Nordeste esteja relativamente sub-representado neste volume) ressaltou a dimensão nacional e o peso das dinâmicas locais no processo de formação do partido. Temos assim uma visão muito mais abrangente da ação da esquerda, dos intelectuais e dos movimentos sociais em todo o país, relativizando de certa forma uma versão “canônica” das origens do partido excessivamente centrada em São Paulo. Por outro lado, as entrevistas também revelam o impressionante impacto nacional e o papel catalisador que as greves operárias do ABC e de São Paulo do fim dos anos 1970, bem como a emergente liderança de Lula, exerceram naquela conjuntura.

Não é fácil entrevistar intelectuais e dirigentes políticos tarimbados. Em geral, eles já possuem uma narrativa razoavelmente estruturada sobre suas histórias pessoais e uma versão mais ou menos pronta sobre sua trajetória, tendo definido a priori quais fatos são importantes e o que deve ou não se tornar público. É possível perceber isso em alguns depoimentos do livro, mas, em geral, os entrevistadores, bastante experientes e hábeis, conseguiram contornar essas narrativas pré-elaboradas, extraindo informações novas e, em muitos momentos, permitindo que a subjetividade dos entrevistados aflorasse. Os relatos emocionados do impacto que a notícia da morte de Che Guevara teve na vida cotidiana e na consciência política do jovem Hamilton Pereira ou a detalhada narrativa das dimensões sociais, políticas e culturais que a greve dos trabalhadores mineiros da educação em 1979 teve para Luiz Dulci são apenas dois exemplos, entre vários, neste sentido.

Os organizadores também tiveram a sensibilidade de questionar sobre as relações pessoais, familiares e elementos da vida cotidiana dos entrevistados, aspectos normalmente menosprezados em entrevistas com dirigentes políticos. As técnicas de história oral são particularmente úteis para explorar esses aspectos e podem oferecer, como no caso de várias das entrevistas editadas, conexões inesperadas entre vida privada e o mundo da política.

Vistas em seu conjunto, as entrevistas nos fornecem um interessante quadro da constituição do que poderia ser chamado de uma “cultura política petista”. O forte e variado peso de uma matriz religiosa, particularmente aquela vinculada à Teologia da Libertação (embora não apenas), a tradição sindicalista, a influência de diversas organizações e ideologias da esquerda, a pluralidade interna e as constantes disputas entre as tendências, bem como as particulares e difíceis mediações entre movimentos sociais e a política institucional, entre outros, são alguns dos elementos desta cultura que recorrentemente pipocam em vários depoimentos do livro.

Mas, um livro com entrevistas de história oral nos fala tanto de como se lembra o passado quanto do presente. A maior parte dos depoimentos foi coletada em meio à maior crise da história do partido, o chamado escândalo do “mensalão”, e neste sentido cabe destacar a coragem de realizar um projeto como este nessas circunstâncias. O tema tanto é mencionado diretamente (em alguns casos pelos supostos envolvidos, como no caso do ex-deputado Paulo Rocha), quanto indiretamente, servindo para contrastar um presente difícil e dolorido, com um suposto passado heróico, do partido da “militância” quando não se tinha dinheiro e estrutura, mas sobrava “alegria” e determinação, como, por exemplo, enfatizam Djalma Bom e Irma Passoni.

Impactados pela crise e mais preocupados em traçar as origens e os primeiros momentos da construção do PT, os entrevistados narram bem menos sobre o período mais contemporâneo. Neste particular, é talvez significativa a relativa escassez de menções e relatos de experiências sobre o governo Lula. É provável que a proximidade cronológica tenha um peso nisso, mas de qualquer forma é um pouco frustrante a ausência de narrativas mais detalhadas sobre esta etapa fundamental da história do PT, particularmente nas entrevistas de personalidades centrais na trajetória do governo, como é o caso de Luiz Dulci e Benedita da Silva. Certamente, os futuros volumes de entrevistas suprirão esta lacuna.

De toda forma, entrevistadores e entrevistados, na maior parte das vezes, não fogem de questões polêmicas e delicadas. Ao lado da justa avaliação da importância do partido para a luta por justiça social e construção da democracia, há também o espaço para a desilusão e a crítica. As entrevistas constroem uma narrativa multifacetada das diversas experiências individuais (e também coletivas) de construção partidária. Revelam uma pluralidade de opiniões e visões e por isso mesmo estão muito distantes de qualquer versão dogmática e “chapa-branca” da história do PT.

A realização de entrevistas com militantes menos conhecidos, mas não menos fundamentais para a trajetória do partido, e sua publicação ao lado dos depoimentos de figuras mais famosas, poderia enriquecer e ampliar ainda mais o entendimento do processo de formação do PT e fica como uma sugestão para volumes futuros. Da mesma forma, parece-me fundamental incluir depoimentos de militantes e dirigentes que já deixaram o partido, mas que tiveram bastante importância em sua construção. Seria muito interessante ver publicadas as lembranças partidárias de antigos petistas, como Francisco Weffort, Jacob Bittar ou Luiza Erundina, apenas para citar alguns exemplos.

Os organizadores tiveram o cuidado de oferecer ao leitor um minucioso trabalho de notas explicativas e biográficas, além de dados adicionais que permitem contextualizar as informações dos depoimentos e enriquecer sobremaneira o livro. Bem editado e de leitura agradável, este livro é, desde já, uma referência imperdível para todos aqueles interessados na história do PT, da esquerda e de nosso país nas últimas décadas.

Paulo Fontes é historiador, professor no Centro de Documentação e História Contemporânea do Brasil da FGV. Foi professor visitante nas Universidades de Duke e Princeton. Autor de Um Nordeste em São Paulo. Trabalhadores Migrantes em São Miguel Paulista