Estante

A idéia de uma história que parta de baixo, ou seja, de uma história que ao invés de estudar as classes dominantes e suas instituições, particularmente o Estado, preocupe-se sobretudo com a existência e os projetos das classes subalternas, está associada à chamada história marxista inglesa, ainda que não seja exclusividade desta.

Eric J. Hobsbawm, Rodney Hilton, Christopher Hill e Edward Thompson são alguns dos nomes dessa escola de historiadores sociais. O mais conhecido deles no Brasil é, certamente, Hobsbawm, cujos livros foram em sua quase totalidade traduzidos.

Ao estudar o mundo em que o capitalismo se universalizou, viu na universalidade, na comparação de manifestações semelhantes em diferentes contextos a fórmula capaz de dar conta desse mundo, onde as fronteiras nacionais, se não deixaram de existir, deixaram há muito de constituir uma barreira.

No campo da história do movimento operário, a contribuição de Hobsbawm é fundamental. Ao apontar que essa história tendera a identificar classes operárias com movimento operário, ou mesmo com organizações, ideologias ou partidos específicos, abriu caminho para os trabalhos preocupados em estudar a classe operária sem reduzi-la às suas lideranças ou às suas expressões organizadas (sindicatos ou partidos).

Em outras palavras, a história da classe operária deixa de ser uma expressão abstrata para tornar-se a história da experiência vivida por homens e mulheres reais.

Já em sua primeira coletânea de artigos sobre a história operária, Os Trabalhadores: Estudo sobre a História do Operariado (Paz e Terra, 1981), Hobsbawm colocou em prática essa perspectiva, abordando temas que até então tinham sido a pouco considerados por muitos historiadores como, por exemplo, o peso do metodismo entre o operariado inglês, as condições de vida e de trabalho de determinadas categorias da classe operária, e a preservação das tradições políticas no movimento operário na Inglaterra e na França.

Além disso, ofereceu novos enfoques sobre temas correntes essa historiografia do movimento operário, como a discussão em torno do padrão de ida dos operários ingleses ou questão da aristocracia operária.

O mais recente livro de Hobsbawm lançado no Brasil, Mundos do Trabalho: Novos Estudos sobre História Operária, insere-se na mesma linhagem. Vinte anos separam as edições inglesas de Os Trabalhadores e de Mundos do Trabalho (respectivamente lançados em 1964 e 1984), espaço de tempo que não deixa de ser importante para compreender as diferenças entre os dois livros.

Sem dúvida um livro inovador sob diversos aspectos, Os Trabalhadores é, contudo, um livro bem mais acadêmico nos temas que desenvolve e mais centrado no caso inglês que Mundos do Trabalho.

Nesta sua segunda coletânea de textos sobre a história operária, Hobsbawm retoma alguns debates acadêmicos como a questão da aristocracia operária (camada de operários que, devido aos seus ganhos e condições de vida, se diferencia - inclusive por suas opções políticas - do restante da classe operária).

Mas o que marca este seu livro é a facilidade com que trata da experiência operária, em diferentes países e épocas, a diversidade dos temas que aborda e, sobretudo, a atualidade política de alguns desses artigos - como "A década de 70: sindicalismo sem sindicalistas?", em que aborda a crise ainda presente do sindicalismo europeu, ou "Deveriam os pores se organizar?", em que discute as formas não-profissionais de organização dos despossuídos.

É impossível no espaço de uma resenha falar de cada um dos dezessete artigos que compõem Mundos do Trabalho; parece-me, todavia, importante enfatizar ainda dois aspectos tratados no livro, particularmente nos artigos "Notas sobre a consciência de classe" e "Qual é o país dos trabalhadores?": o que unifica e o que divide a classe operária.

No primeiro desses artigos Hobsbawm estuda o que unifica a classe operária, independente do credo professado, da raça, da origem étnica, da categoria profissional; ou seja, debruça-se sobre a consciência de classe que permite que os interesses individuais ou grupais sejam postos de lado, na medida em que todos se identificam com os interesses considerados como sendo de classe. Hobsbawm parte do pressuposto que as classes sociais, os conflitos de classe e a consciência de classe existem e desempenham um papel importante na história.

Entretanto, com grande freqüência não é a consciência de classe que domina, mas sim a identificação dos operários com outros interesses, de caráter nacional, religioso, racial, ou corporativo, enfim formas de consciência que dividem a classe, possibilidade que o autor analisa no segundo dos dois artigos.

A importância dessas análises está em demonstrarem que a consciência de classe não é uma decorrência natural e inevitável da existência da classe operária e da luta de classes, mas que tampouco é algo inexistente, uma mera construção ideológica, como pretendem certos cientistas sociais, pois sem ela não seriam possíveis greves gerais ou revoluções.

Todo o trabalho de Eric Hobsbawm como historiador está imbuído da perspectiva de ruptura com o capitalismo e de criação de um mundo melhor. Portanto, nada mais apropriado do que concluir com suas palavras: "Para muitos de nós o objeto final de nosso trabalho é criar um mundo no qual os trabalhadores possam fazer sua própria vida e sua própria história, ao invés de recebê-las prontas de terceiros, mesmo dos acadêmicos".

Cláudio Batalha é professor no Departamento de História da Unicamp.