Estante

O Brasil de Florestan chega em boa hora, quando a crise política nos encurrala em uma nova configuração do tipo “circuito fechado”. Além disso, os textos de Florestan Fernandes, cuidadosamente selecionados por Antônio David, para compor um volume da coleção "Pensadores do Brasil: do tempo da ditadura ao tempo da democracia", idealizada pela Fundação Perseu Abramo, leitura obrigatória por duas razões. A primeira, por tudo o que podemos aprender sobre a nossa formação social e sobre os nossos dilemas ao ler uma amostra do que Florestan Fernandes escreveu sobre o Brasil. A segunda razão refere-se aos efeitos da exposição dos textos em ordem cronológica. Ela possibilita um mergulho no modo de refletir do autor, acompanhando paulatinamente o desenvolvimento de suas ideias, o abandono progressivo de algumas posições convencionais inspiradas nos autores em voga na década de 1940, a adoção de uma estratégia complexa de compreensão dessa realidade chamada Brasil e a assunção de um postura intelectual militante que não se limita a analisar o passado e o presente, pois projeta suas análises no campo das possibilidades, do futuro. Assim, o cientista social ultrapassa o lugar da análise e constatação das dinâmicas e estruturas dos processos sociais (que são entendidos em suas dimensões políticas, econômicas, culturais e psicossociais) para chegar à trincheira da contestação da ordem social vigente quando ela se torna intolerável para padrões minimamente democráticos.

Dessas duas razões surgem consequências necessárias, como a urgência e a carência que temos hoje de análises estruturais para a compreensão do Brasil contemporâneo e da “atualização” dos dilemas tão convincentemente formulados por Florestan. Ao ler os textos que tratam do tema da revolução burguesa e da contrarrevolução, por exemplo, somos tentados a projetá-los diretamente no presente, como se eles tivessem poder explicativo para o que vivemos aqui e agora. Certamente há elementos estruturais que permanecem, mas há também novas configurações, contradições, atores coletivos, processos tecnológicos, enquadramento geopolítico que precisam ser devidamente calibrados na análise.

Antes que a leitora e o leitor imaginem que o livro é um compêndio de textos sociológicos herméticos, devo adverti-los de que se trata antes de um passeio, repleto de surpresas, pela mente de Florestan. Ao todo são 23 artigos publicados entre 1943 e 1991, cobrindo quase cinquenta anos de reflexão. Boa parte são resenhas de livros que mostram aspectos da formação da sociedade brasileira. A primeira delas analisa o livro Gente sem Raça (Ataliba Viana, 1944), as resenhas seguintes tratam de livros que abordam temas como a Revolução Liberal de 1842 (Aluísio de Almeida, 1944), contos populares (Aluísio de Almeida, 1944), aculturação de imigrantes alemães no Brasil (Emilio Willems, 1946), a segunda edição de Raízes do Brasil (Sérgio Buarque de Holanda, 1948), a publicação de Brazilian Culture: na Introduction to the Study of Culture in Brazil (Fernando de Azevedo, 1950) nos Estados Unidos, passando por Caminhos e Fronteiras (Sérgio Buarque de Holanda, 1958), e Le Brèsil, Structure Sociale et Instituitions Politique (Jacques Lambert, 1959), chegando a Perspectivas da Economia Brasileira (Celso Furtado, 1959) e, incluiria também aqui, o Prefácio à segunda edição de História e Desenvolvimento (Caio Prado Júnior, 1988). Essa breve amostra é reveladora da importância que Florestan Fernandes dava aos estudos de natureza histórica, política e econômica ao lado de estudos de cunho cultural, num arco que inclui a cultura popular, processos de aculturação de imigrantes de origem europeia, destinos variados dos povos indígenas em suas manifestações de resistência à colonização etc. É difícil imaginar outro intelectual com um espectro tão amplo de interesses. E ainda mais rara a capacidade de articular esse conjunto de conhecimentos dispersos em pesquisas que buscaram encontrar respostas às grandes questões que afetavam (e ainda afetam) a sociedade brasileira no século 20.

Os dois manuscritos inéditos que compõem a coletânea merecem destaque. Em Elementos Étnicos na Formação Brasileira – conferência proferida na Faculdade de Direito de Assunção, em 20 de julho de 1940, às vésperas do seu aniversário de 23 anos –, Florestan discute a “tendência à fusão” dos elementos étnicos constitutivos da sociedade brasileira, pergunta-se se há preconceito racial no Brasil e se haveria um “tipo brasiliano”. Para a pesquisadora do pensamento de Florestan Fernandes e/ou dos modos de compreensão das relações raciais no Brasil, o manuscrito é interessantíssimo. Nele o autor se fundamenta nos estudos sobre o tema, como os trabalhos de Roquette Pinto, Alfredo Ellis, Emilio Willems, Oliveira Viana, Gilberto Freyre, Oracy Nogueira, Sérgio Buarque de Holanda, para citar alguns, apresentando uma visão que hoje poderíamos chamar de “convencional” da configuração étnico-racial da sociedade brasileira. Ao discutir a existência do preconceito racial entre nós, tende a concordar com a tese de Donald Pierson em que a mestiçagem biológica e o seu resultado humano, o mestiço, são tidos como elementos reguladores das relações raciais, um modo de contenção do “problema racial” no país. Entretanto, faz uma importante ressalva ao núcleo do argumento de Pierson para quem “a aceitação de elementos racialmente caracterizados – como o negro – está mais em função de seu status econômico e social do que em sua cor”. Observamos aí o jovem estudante, já iniciado na pesquisa de campo, questionar alguns lugares-comuns. Concorda parcialmente com a tese, afirmando que a conclusão de Pierson poderia ser válida para o Norte do Brasil, incluindo também o Rio de Janeiro, e talvez partes do Sul, mas atesta, com base na pesquisa que ele próprio realizara em Sorocaba, “a existência do preconceito contra o negro (não podem entrar em certas barbearias de luxo da cidade; não podem participar de certos clubes da sociedade ‘alta’; não podem nadar em certas piscinas, etc.)”. E conclui dizendo que “isso é mais ou menos característico das populações sulinas” (p.14).

Ora, à medida que os textos avançam cronologicamente, a temática das relações raciais vai ganhando os contornos próprios da obra de Florestan Fernandes, principalmente após a sua participação na pesquisa sobre as relações raciais em São Paulo, encomendada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) a Roger Bastide (a pesquisa também foi realizada em Salvador por Thales de Azevedo, no Rio de Janeiro por L. A. Costa Pinto e no Recife por René Ribeiro) no início dos anos 1950. Foi essa pesquisa que possibilitou, na década seguinte, a sua formulação sobre o dilema racial brasileiro (ver o texto “Relações de raça no Brasil: realidade e mito”), cuja superação representaria para o autor a prova dos nove da efetivação de uma ordem democrática na sociedade brasileira. Ao concluir a tese de livre-docência “A integração do negro na sociedade de classes”, em 1964, o Brasil iniciava uma longa marcha em direção à atualização e ao aprofundamento do estado autocrático, todo ele avesso a qualquer forma de sopro democrático.

A fratura produzida em 1964 levou Florestan Fernandes a se colocar a pergunta sobre as razões que levaram ao golpe civil-militar. Se em “A integração do negro na sociedade de classes” o autor analisa a passagem da ordem escravocrata para a ordem social competitiva, tomando como referência o drama da população negra agora liberta, a partir de 1966 centrará sua energia intelectual no tema da revolução burguesa e sua configuração recente, a contrarrevolução. O ponto de partida desse projeto será a disciplina ministrada por Florestan para estudantes do quarto ano do curso de Ciências Sociais denominada “Formação e desenvolvimento da sociedade brasileira”. E aí chegamos ao segundo manuscrito inédito constituído de anotações do autor para a organização da referida disciplina.

A leitura do manuscrito é riquíssima. Nele podemos observar o professor refletindo sobre o que deseja do ponto de vista didático com o curso, os passos que propõe para alcançar os objetivos traçados, as questões que o sociólogo elabora, os caminhos percorridos e as trilhas a serem abertas para a compreensão articulada de uma “sociedade nacional” de formação colonial e escravocrata. As anotações de plano de ensino, com dez tópicos, incluem com destaque uma discussão conceitual, ou “problemas gerais”, em torno do “uso de técnicas e de conceitos sociológicos na descrição e interpretação de uma sociedade nacional”; e aspectos universais de particulares da colonização no Brasil. O último tópico propõe a discussão de “uma perspectiva sociológica do presente e do futuro”. Entre o primeiro e o último tópico estão contidos os processos fundamentais para análise proposta. É possível tomar esse manuscrito como um espelho duplo, de um lado revelador de uma síntese das principais questões que Florestan havia pesquisado em sua trajetória, de outro a projeção de parte significativa da obra que viria a seguir.

Para tentar concluir esse breve comentário sobre o livro, deixo para a reflexão, e convite à leitura, um excerto, de 1990, em que Florestan sintetiza uma tarefa ainda inconclusa que deveria nos desafiar:

A revisão crítica da "história oficial" mais urgente é a da República. Timbramos por ela ter uma realidade e uma representação pelo avesso, as quais passam por ser o concreto. Não se trata apenas de um "vezo das elites". Elas, sem dúvida, deram um belo retrato de si próprias: quando se mostraram amargas, preferiram recorrer às consequências psicológicas e culturais, à "fusão das três raças tristes". Camuflaram o seu desenraizamento por trás de um verniz sombrio e de uma metafísica do real. Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior iniciaram a "história objetiva" e vários historiadores ilustres e mais jovens a aprofundaram e abriram várias trilhas. Contudo, os mitos permanecem de pé. A necessidade de descolonização não foi percebida como um desafio científico ou dilui-se na compensação psicológica proporcionada pela identidade intelectual europeia, que permitia forjar clichês novos, empilhando-os sobre os preexistentes (p.237, negrito meu).

Eliane Veras Soares é socióloga e professora da Universidade Federal de Pernambuco