Estante

Luiz Eduardo Soares abre seu livro Desmilitarizar: Segurança Pública e Direitos Humanos com uma dedicatória às mães dos jovens mortos pela polícias e às mães dos policiais também mortos nos confrontos pelo país. Para ele, se essas mães compreenderem que o inimigo está em outro lugar “a politização do sofrimento promoverá uma revolução no Brasil”. A frase não poderia ser mais oportuna depois da comovente cena em que um policial consola a mãe de Willian Augusto da Silva, sequestrador de um ônibus em Niterói que foi alvejado pela polícia do Rio de Janeiro em agosto passado. William levava consigo uma arma de brinquedo e tinha desequilíbrio mental. A morte dele foi comemorada aos pulos pelo governador Wilson Witzel. O mesmo que menos de um mês depois afirmou que a política de segurança pública do estado está no caminho certo. A declaração veio após o assassinato, também pela própria polícia, da menina Ágatha Felix, de 8 anos, no Complexo do Alemão.

Antropólogo, escritor e pós-doutor em Filosofia Política, Soares é hoje um dos maiores nomes da área de segurança pública no Brasil. Nascido no Rio de Janeiro, ocupou, entre outros cargos públicos, o posto de secretário Nacional de Segurança Pública entre janeiro e outubro de 2003 (primeiro governo Lula).

Em Desmilitarizar, livro dividido em quatro capítulos, o antropólogo constrói a noção de violência como uma dimensão própria da sociedade, sendo capaz de criar suas próprias e complexas dinâmicas. Distancia-se assim das noções que acreditam que a violência é apenas um efeito secundário das imensas iniquidades e da opressão de classe. Dessa forma, Soares defende que o problema no Brasil tenha uma centralidade que perpassa a máxima “resolvendo os problemas da desigualdade, os índices de violência diminuirão”, como num passe de mágica. Até porque, de fato, a empiria nos traz resultados diferentes: desde a democratização, passando pelos governos do PT– em que se reduziram as desigualdades –, a violência aumentou no país. Os índices de homicídios saltaram de menos de 15 mil por ano no início da década de 1980 para mais de 58 mil em 2018. Um aumento de quase 400% em 30 anos. O Brasil mata mais que os continentes da Europa, América do Norte e Oceania juntos.

A resposta do senso comum ligada à “guerra contra o crime”, “bandido bom é bandido morto” e “mete todo mundo na cadeia” tampouco parece ajudar. O encarceramento explodiu no mesmo período: no início dos anos 1990, a população carcerária era de 100 mil. Hoje bate os 700 mil. É a terceira maior população carcerária do mundo em números absolutos, e o maior índice de crescimento dessa população, desde 2002. O populismo penal, apesar de ter elegido políticos no último período, inclusive o presidente da República em 2018, não apresenta soluções factíveis. Logo no início do livro, Soares diz: “Pretendo demonstrar que, mesmo do ponto de vista exclusivamente pragmático, o descumprimento dos direitos humanos por parte das polícias leva a sua degradação e seu consequente enfraquecimento e conduz ao fortalecimento do crime. Em bom português: prezada leitora, prezado leitor, aceitar e estimular a violência policial é um tiro no pé. Se você deseja a segurança de sua família e não se importa se o preço a pagar for o assassinato de jovens nas favelas, atenção, pense bem. Não vai dar certo. Quer uma prova irrefutável? Já não deu (...) Portanto, quem deseja segurança deve defender o respeito rigoroso aos direitos humanos e à legalidade constitucional por parte dos policiais, mesmo que não concorde com os valores expressos nos documentos internacionais de que o Brasil é signatário e mesmo que deseje ver a Constituição alterada”. (páginas 15 e 16). Quando a polícia não respeita as leis, quando deixa de representar a legalidade, quando ela e o crime são indistinguíveis, reina a insegurança.

Ou seja, a despeito da lógica punitiva que dominou as políticas na área nos últimos anos, a população não passou a se sentir mais segura. Além disso, a superlotação das cadeias gera quadros de alerta devido às péssimas condições de higiene, a polícia brasileira segue matando inocentes nas favelas e periferias do país e é diagnosticada com depressão, a ponto de o número de suicídios entre policiais ser maior do que o número de mortes em serviço.

Os dados apresentados já são, em maior ou menor medida, conhecidos, debatidos na mídia. A potência do livro não está aí, mas sim no diagnóstico profundo para entender as raízes do problema e os caminhos para desenhar possíveis soluções.

Primeiro elemento central: o país não quer ou não sabe discutir a temática. Entre uma direita com baixo compromisso democrático; um liberalismo – no sentido de John Stuart Mill – com pouca aderência no país; uma esquerda que desempenha um importante papel de denúncia, mas com baixa capacidade de formulação; uma categoria profissional – os policiais militares – excluída do debate público; e uma sociedade que não conseguiu romper com as amarras escravagistas e autoritárias para a construção de uma sociedade moderna, o debate torna-se nebuloso e com baixa condição de se chegar a consensos mínimos.

Buscando esse consenso mínimo, o autor faz uma retomada histórica. Na raiz dos problemas estão as desigualdades abissais, o racismo estrutural, a arquitetura institucional da segurança pública que atribui – via artigo 144 da Constituição Cidadã de 1988 – pouca responsabilidade à União (ente federativo que teria a capacidade de reformas mais estruturais) e pouca autoridade aos municípios (onde os conflitos se dão, afinal, nos territórios). A maior parte da responsabilidade pela segurança pública fica a cargo nos estados, num desenho absolutamente incompatível que gera ingovernabilidade e hostilidade. Somada a isso, uma crise econômica aguda que se seguiu a 1988 neutralizou a percepção de mudança, diminui as virtudes da nova institucionalidade e permitiu que o passado seguisse se reproduzindo no imaginário na população. O potencial transformador da Carta de 1988 se enfraqueceu.

Soares faz uma avaliação profunda sobre os resultados do modelo de polícia promulgado na Constituição, bem como uma crítica à política de drogas no país. De maneira geral, pode-se dizer que, pelo modo como se estruturou o esquema de drogas e tráfico, consolidou-se uma cadeia de crime que é interessante economicamente para o crime organizado (facções), para as forças policiais permeadas pela corrupção, para as milícias, e para os políticos que se beneficiam desse esquema. É uma cadeia de ganha-ganha com relativa estabilidade benéfica para a economia do crime. Perde a população vulnerável das periferias e favelas do país, que passa a ser alvo de uma falsa “guerra” contra o crime e contra as drogas instaurada pelo Estado – que, em maior ou menor medida, está imbricado com o próprio crime.

O autor faz assim um texto necessário em tempos permeados pelo populismo irresponsável e salvacionista de extrema-direita, que apenas agrava uma situação extremamente complexa. Quando camadas superiores do poder (aqui incluindo agentes da Justiça) oferecem cobertura à barbárie e fazem vista grossa para a violação de direitos humanos nos territórios, o crime se fortalece.

É um livro que tem como objeto a democracia brasileira e seus limites, e como objetivo final ajudar na transição – sempre incompleta e inconclusa no país – para um Estado Democrático de Direito, “valores sem os quais não haverá país que mereça esse nome!” (pág. 19).

Jordana Dias Pereira é formada em Sociologia pela Unicamp, mestranda, pertencente ao Grupo de Estudos Sobre Violência e Administração de Conflitos (Gevac/UFSCAR) e integra o Grupo de Conjuntura da Fundação Perseu Abramo