Estante

Qualquer projeto político sério para o Brasil a ser debatido durante as eleições presidenciais de 2022 deve considerar a grave crise econômica, o número de 12 milhões de pessoas desempregadas e o aumento de 40% de trabalhadoras e trabalhadores em aplicativo desde 2016 (Ipea). Esses indicadores expressam, ainda que de forma muito resumida, que grande parte da população brasileira se encontra em condições assustadoras de trabalho, recebendo salários irrisórios e em jornadas extenuantes. No entanto, não era essa a promessa feita há poucos anos.

Para entender como a profecia empresarial, que penhorava a criação de 6 milhões de empregos em troca da redução de direitos sociais, resultou num retumbante fracasso, é preciso voltar um pouco no tempo. Em 2017, empresários e seus representantes legislativos implementaram a chamada reforma trabalhista, alterando quase uma centena de disposições legais. O fiasco propagado pelos empresários e as consequências dessas mudanças na lei trabalhista na vida das pessoas são explicados no livro de Vitor Filgueiras. “É Tudo Novo”, de Novoas narrativas sobre grandes mudanças no mundo do trabalho como ferramenta do capital, lançado no final de 2021 pela Editora Boitempo. O livro apresenta uma síntese fundamental para entender como viemos parar nesse cenário apocalíptico de pobreza endêmica. Em cinco capítulos, demonstra que a proposta de redução de direitos trabalhistas não é novidade no Brasil, ao contrário.

Não bastaria, no entanto, anunciar a referida falta de novidade sem demonstrá-la. Por isso, Filgueiras não economizou em dados e informações, acionando resultados de pesquisa reunidos ao longo de toda sua trajetória, conjugados com muitos documentos, dentre eles, relatórios internacionais da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT). O autor deu atenção a documentos e indicadores do Ministério do Trabalho, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.

Em “Tudo Novo”, de Novo, as análises consideram a dinâmica transnacional do capitalismo e das relações de trabalho, abordando acontecimentos em diversos países. No livro, temos acesso a um grande volume de material corporativo, que demonstra como se combinam, na prática, os interesses do capital com a política. Ao traçar essa hipótese, Filgueiras encontra uma sofisticada operação de tempo: passado, presente, futuro e modernização são palavras que se tornaram ferramentas valiosas na constituição de um discurso poderoso que aloca o acúmulo de luta por direitos sociais na medida do atraso a ser superado. Nenhuma novidade, é verdade. Quando da instalação da legislação trabalhista, ainda nos anos 1920, empresários de São Paulo instituíram um cerco legislativo contra a proibição do trabalho infantil nas fábricas. Temiam que o fim da contratação de crianças desarticulasse a indústria nacional e para impedir a aplicação da norma contaram com a cooperação dos poderes Legislativo e Judiciário, criando um forte discurso de que as leis protetivas não deveriam ser aplicadas. A burla é “o pecado original da sociedade e da ordem jurídica brasileira”, de acordo com o historiador Luiz Felipe de Alencastro, que se referia a prática ilegal da escravidão ao longo de boa parte do século 19, com base nos resultados de pesquisa da historiadora Beatriz Mamigonian. A ilegalidade e a mentira permanecem no jogo político brasileiro fundamentando-se na lógica de que a diminuição do custo do trabalho, na medida da redução de direitos, resulta em mais postos de trabalho e consequente modernização. Assim, desde a abolição.

A duradoura hegemonia do “livre mercado” ajuda a entender por que as coisas mudam tanto e, ainda assim, encontramos permanências surpreendentes, como as que aparecem no livro de Vitor Filgueiras. A radicalização das condições extenuantes de trabalho é um exemplo preciso. Nos anos 1990, a produtividade dos trabalhadores no corte de cana dobrou apenas pela intensificação das condições de trabalho e, mesmo a mecanização da década seguinte, não impediu dezenas de mortes por excesso de trabalho; dessa forma, a vida laboral dos cortadores de cana do começo do século 21 se tornou mais curta que a dos escravizados do século 19.

Essa sofisticada operação de tempo, na qual a permanência se apresenta como novidade castiga também o que o autor do livro chama de “campo do trabalho”. Na visão de Filgueiras, sindicatos e organizações ligadas à ampliação de direitos não percebem a gravidade da prática da conciliação de interesses na arena política. É bem verdade que o próprio autor reconhece o “livre mercado” como uma força hegemônica que não é, por conseguinte, externa ao campo do trabalho, nem mesmo aos movimentos sociais tidos como mais combativos. Para desenvolver esse aspecto, seria necessário examinar como a legislação trabalhista instalada no país em nome da conciliação e que direitos sociais não são, por natureza, civilizatórios ou protetivos. A norma é campo de conflito constante e histórico, como podemos verificar na experiência de trabalhadoras que denunciavam medidas excessivas de proteção ao passo que exigiam o reconhecimento da reprodução da vida como elemento fundamental da justiça social. Para compreender a atuação da classe trabalhadora no tempo e de uma forma integral, seria preciso considerar que a escravidão ilegal foi combatida, por dentro da lógica senhorial, por pessoas escravizadas.

Intelectuais, pessoas ligadas à política ou ao “campo do trabalho” conseguirão conjugar a experiência de mulheres, pessoas negras e trabalhadores em situações assustadoras de trabalho a propostas de transformação social quanto mais reconhecerem a medida da permanência do liberalismo em práticas disfarçadas de “modernas”. A operação de tempo, o jogo de cena entre o arcaico e o moderno, o atual e o anacrônico, devem compor, em definitivo, as análises políticas sob pena de se acreditar em profecias ou não reconhecer o arbítrio da ilegalidade. A reorganização social do Brasil passa por denunciar as permanências e, por esse motivo, o livro de Vitor Filgueiras é fundamental.

Glaucia Fraccaro é professora adjunta do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Cataria. Autora de Os Direitos das Mulheres – Feminismo e Trabalho no Brasil. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2018