Estante

A revista Novos Estudos n° 35, de março de 93, apresenta uma trilogia de artigos denominada "Dossiê Partido dos Trabalhadores". Nela estão incluídos o artigo "A experiência do PT na Prefeitura de São Paulo", de Lúcio Kowarick e André Singer; o ensaio "PT: dilemas da burocratização", de Carlos Alberto Marques Novaes; e, finalmente, um artigo de Gabriel Bolaffi sobre "A campanha eleitoral de Eduardo Suplicy", refletindo sobre a disputa municipal de 1992.

São três textos que incidem sobre um debate muito atual dentro do PT e que contemplam questões centrais da pauta do partido: as relações com o espaço institucional e as possibilidades de operação de reformas que acumulem numa perspectiva de transformação social; inversão de prioridades num governo petista e negociação/mediação entre os diversos setores e sujeitos sociais; o processo de burocratização e institucionalização de um partido que surgiu com a proposta de contestar "tudo o que está aí": a relação das direções e coletivos partidários com suas expressões públicas e com seus candidatos a cargos institucionais. Estas e outras questões tornam a leitura destes textos de muita valia para quem busca compreender o que se passa no PT para além das aparências e ultrapassando as rotulações e estereótipos, infelizmente tão em moda nos enfrentamentos incemos do partido.

O texto de Lúcio Kowarick e André Singer, "A experiência do PT na Prefeitura de São Paulo", é particularmente importante como tentativa de explicar uma evolução aparentemente contraditória ocorrida na gestão da prefeita Luiza Erundina em São Paulo: uma pré-candidata vence a disputa interna, contra a tendência majoritária na direção do partido, afirmando a radicalidade de elementos da democracia direta (conselhos populares com poder deliberativo, para usar a formulação da época) e termina sua gestão recebendo do partido a avaliação de um excesso de "administrativismo".

O artigo procura, justamente, ir além desses estereótipos e trabalha a evolução de um governo que inicia sua gestão fazendo das reivindicações populares a matéria-prima de sua tomada de decisões e evolui para uma prática de governo que privilegia seu papel de instância de negociação dos interesses diversos e contraditórios que ocorrem no conjunto da sociedade. O texto discute a possibilidade de, dentro desta evolução, seguir-se operando a chamada "inversão de prioridades", estabelecida no programa de governo petisca. Aborda, ainda, o polêmico tema de um "governo do PT", sua relação com o partido e a formulação expressa e praticada ao longo da gestão Erundina de um "governo para todos os paulistanos, a partir da ótica petisca".

Na realidade, os autores sustentam a tese de que, justamente "aprendendo a negociar", o governo conseguiu implementar elementos da chamada "inversão de prioridades". Buscam demonstrá-la com ilustrativos dados comparativos em relação a gestões anteriores.

Outro tema abordado pelo texto, que merece destaque, é a trajetória de uma ação de governo baseada em uma concepção strictu sensu classista para uma forma de governar ancorada no resgate dos direitos da cidadania para as mais amplas camadas sociais. Neste sentido se utiliza o termo "republicanismo democrático" para a qualificação mais geral deste governo.

Insisto na obrigatoriedade da leitura deste artigo no momento em que o partido debate seu projeto estratégico alternativo, as bases do programa Lula 94, e não se pode esquecer a relação da ex-prefeita com o PT na "pós-experiência governo Itamar".

Carlos Alberto Novaes, conhecido de todos os delegados aos últimos encontros do partido por suas persistentes pesquisas, inicia neste ensaio a apresentação da sistematização do trabalho que compõe sua tese de mestrado. É ainda uma visão parcial do processo de institucionalização e burocratização do PT, com destaque para o processo de centralização. O autor trata da contradição que se verifica entre a tendência inicial de um partido de contestação da ordem e sua progressiva adaptação à cultura política vigente. Destaca que esta adaptação não se resume a uma capitulação frente à política institucional, que resulta do desenvolvimento de elementos trazidos pelos militantes a partir das instituições em que realizavam seu trabalho antes de ingressarem no PT (Igreja, sindicato, movimentos sociais, grupos e partidos da esquerda tradicional). A partir destes elementos, Novaes trabalha as contradições de forma e conteúdo que o partido vai desenvolvendo e levanta as possibilidades de distorções progressivas no campo de seu projeto original socialista e na forma democrática de atuação de uma organização com estas características.

Em que pese a restrição de sua pesquisa ter tomado como universo apenas os delegados a encontros nacionais (quem conhece o partido sabe das distorções que esta representação muitas vezes envolve), os dados e elementos levantados no ensaio devem provocar e permitir o aprofundamento deste debate no partido.

Finalmente, o texto de Gabriel Bolaffi e sua análise da campanha de Eduardo Suplicy à Prefeitura de São Paulo em 92. O autor centra sua crítica nos aspectos personalistas e despolitizados desta e de outras campanhas eleitorais do PT, apontando corretamente a contradição entre esta característica e a proposta global do partido, que pretende ser educador das massas, criador de uma nova cultura política e portador de uma nova postura ética.

Bolaffi aponta corretamente uma série de equívocos da campanha (primazia da figura do candidato sobre o partido, abandono de uma defesa real da administração petista e a negligência de nossa lista de candidatos à Câmara Municipal da cidade); sinaliza, ainda, com muita razão, a não abordagem, na campanha, dos problemas do socialismo e suas experiências (assumindo, o partido, uma postura defensiva e envergonhada); ressalta também a não diferenciação adequada entoe o que significava o PT, juntamente com seus aliados, em relação aos demais partidos e coligações.

O problema mais delicado, ao qual o autor não dá a devida ênfase, foi exatamente a relação entre a direção municipal do partido e o comando da campanha do candidato. Estas relações, dentro do surrealismo que marca muitas vezes "o modo petista de se relacionar", estiveram longe do convencional, vale dizer, a direção do partido teve um poder de intervenção bastante reduzido no programa de televisão.

Apesar disso, as conclusões tiradas são inteiramente válidas. Permito-me abrir uma exceção quanto às razões que, de acordo com Bolaffi, teriam movido a direção partidária no caso do convite de Itamar a Erundina.

Segundo o autor, foram os interesses eleitorais das lideranças que impulsionaram o PT naquele episódio, abordado, aliás, no artigo, com perigosa rapidez.

Gilberto Carvalho é membro da Comissão Executiva Nacional do PT.