Estante

capa O Brasil PrivatizadoEste trabalho do conhecido jornalista Aloysio Biondi veio preencher uma lacuna. Pelo que se noticia, o Brasil vem sendo palco do maior processo de privatização de estatais, jamais havido antes. Nunca se privatizou tanto em tão pouco tempo. O processo foi cercado, para não dizer nublado, por intensa propaganda que o justificava de vários ângulos: o Estado brasileiro era um paquiderme, pesadão e inoperante; os serviços públicos, uma vez privatizados, melhorariam de qualidade e ficariam mais baratos; e o dinheiro apurado serviria para abater a dívida pública, fazendo com que sobrassem mais recursos para gastos sociais.

Biondi, que já vinha criticando e denunciando as privatizações, reuniu neste volume todas as acusações e todos os dados, de modo a proporcionar ao leitor um quadro completo do que vem sendo feito com o patrimônio público investido nas estatais. O que ele mostra é que exatamente porque este patrimônio foi vendido em leilão em pouquíssimo tempo, foi necessário despertar o interesse dos poucos compradores em potencial oferecendo-lhes inúmeras vantagens. Para começar, as estatais a serem vendidas foram antes "saneadas", ou seja, de empresas deficitárias que eram foram tornadas lucrativas. Para tanto o governo investiu grandes somas nelas, aumentou-lhes substancialmente as tarifas (eliminando os subsídios cruzados, que beneficiavam os consumidores de baixa renda) e assumiu boa parte de suas dívidas.

Consultoras internacionais foram contratadas para avaliar estas empresas e aplicaram o método usual de projeção da "presumível" lucratividade futura, sem considerar em absoluto tudo o que o Estado gastou para o seu saneamento. Como tais avaliações são em larga medida arbitrárias, elas muitas vezes levaram o governo a pedir preços mínimos inferiores ao que ele investiu somado às dívidas assumidas por ele. Tudo isso é mostrado por Biondi, à luz de dados a maior parte das vezes oficiais. A conclusão é óbvia: do ponto de vista do erário, teria sido muito melhor manter as empresas no setor público, em vez de vendê-las a preços de liquidação.

Além disso, os compradores tiveram facilidades especiais, sempre às custas dos cofres públicos. Uma notória foi que boa parte do pagamento foi feita com "moeda podre", isto é, com títulos públicos que ainda levariam anos para vencer e que estavam cotados muito abaixo de seu valor nominal no mercado, dada a pequena credibilidade do governo brasileiro. Os grupos que arremataram estatais puderam comprar tais títulos com grandes descontos e os usaram para pagar a conta ao governo, pelo valor nominal dos mesmos. Só isso representou um subsídio muito importante. O argumento de que o governo teria que pagar um dia estes títulos pelo valor nominal dos mesmos não se aplica, pois não havia porque antecipar o seu resgate, e se fosse para resgatá-los agora o próprio governo poderia tê-los adquirido no mercado financeiro, economizando 40, 50% ou mais do seu valor.

Mas isso só não bastou. O BNDES financiou grande parte do pagamento das estatais, a prazos e juros favorecidos. Os dados apresentados por Biondi a este respeito são chocantes: "por incrível que pareça, e o que é geralmente desconhecido pela opinião pública, mesmo 'moedas podres' usadas nos leilões também foram vendidas a prestação, financiadas pelo BNDES. Como assim ? Era o próprio banco do governo que tinha 'moedas podres' guardadas e as colocava em leilão, para os interessados em 'comprar' estatais, em condições incríveis: até 12 anos para pagar e com juros privilegiados."

O Brasil privatizado é muito rico em denúncias, a maioria documentada, constituindo um contraponto eficaz à propaganda oficial. Ele está na tradição do grande panfletarismo, do jornalismo investigativo de denúncia, que coloca em xeque as versões dominantes, veiculadas interesseiramente pela grande mídia. A cumplicidade desta com o governo é devidamente vergastada por Biondi, já que a maior parte dos fatos compilados já era do conhecimento público.

Mas, Biondi atribui também ao governo as piores intenções, o que ele naturalmente não pode provar. Ele escreve à p.6: "... o famoso processo de privatização no Brasil está cheio de aberrações. Não foi feito para 'beneficiar o consumidor', a população, e sim levando em conta os interesses - e a busca de grandes lucros - dos grupos que 'compraram' as estatais, sejam eles brasileiros ou multinacionais." E na página seguinte: "Houve uma intensa campanha contra as estatais nos meios de comunicação, verdadeira 'lavagem cerebral' da população para facilitar as privatizações. Entre os principais argumentos, apareceu sempre a promessa de que elas trariam preços mais baixos para o consumidor 'graças à maior eficiência das empresas privadas'. A promessa era pura enganação. No caso dos serviços telefônicos e de energia elétrica, o projeto de governo foi fazer exatamente o contrário, por baixo do pano ou na surdina".

Dá para entender a indignação do autor, mas teria sido melhor que ele se limitasse a apresentar os fatos e deixasse ao leitor a tarefa de interpretar os propósitos de quem comanda o desmonte do Estado no Brasil. Seja como for, este livro é uma preciosa contribuição para o debate sobre o papel do Estado e do capital privado na prestação de serviços públicos. Merece ser lido, comentado, debatido e criticado. Biondi é um mestre do jornalismo investigativo, é vital que seu exemplo seja seguido pela nova geração.

Paul Singer é economista, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e membro do Conselho de Redação da revista Teoria e Debate.