Estante

O Capital no Século XXIA teoria econômica clássica fundamentou parte significativa das suas formulações tomando como pressuposto a ideia de que o crescimento econômico e o progresso técnico e tecnológico desaguariam no desenvolvimento social e na melhora na qualidade de vida da maior parte da população. Mais ainda: a concorrência entre empresas e a competição entre indivíduos abririam possibilidades para a ascensão e uma mobilidade social baseadas no mérito.

O avanço da sociedade de consumo e do american way of life nos EUA, as conquistas da social-democracia nos trente glorieuses na Europa e os saltos empreendidos a partir dos milagres econômicos em alguns países desenvolvidos seriam as provas do sucesso da sociedade de mercado.

No entanto, talvez essas experiências tenham sido apenas exceções em uma trajetória de desenvolvimento capitalista marcada mais pela desigualdade de riquezas do que pela igualdade de oportunidades. A partir dessa provocação fundamental Thomas Piketty empreende um amplo estudo em que articula história econômica, estatística social e economia política, com pitadas de boa literatura francesa e inglesa, para recolocar no centro do debate econômico os problemas relacionados à renda e à riqueza na economia de mercado.

O livro repousa sobre quatro perguntas fundamentais e cada uma delas norteia as partes em que a obra está dividida: como os regimes de crescimento econômico e demográfico impactam a acumulação de rendas e riquezas?; quais são, se é que existem, as diferenças entre o capitalismo patrimonial dos séculos 18 e 19 e o capitalismo financeiro do século 21?; é possível no longo prazo a convivência entre, de um lado, a democracia e a meritocracia e, de outro, a concentração de riquezas e a criação de fortunas?; como o Estado pode atuar, a partir dos tributos e impostos, como um regulador e um desconcentrador de heranças e patrimônios a fim de que o capitalismo possa ser “civilizado”?

Na primeira parte do livro (“Renda e capital”), Piketty aborda a questão elementar do conflito distributivo no capitalismo, qual seja: a relação entre a remuneração do trabalho e a remuneração do capital. Assim como a desaceleração demográfica tende a gerar piora na distribuição de renda (em função da concentração de heranças e patrimônios), a desaceleração do crescimento também impacta negativamente a distribuição de renda, pois exclui dos mercados de trabalho e de consumo uma parcela importante da população. Neste início de século 21, o que se observa é tanto o desaquecimento demográfico quanto o início de um regime de baixo crescimento econômico que tem afetado a estrutura de renda e riqueza dos países, fazendo com que os rendimentos e a remuneração do capital avancem a passos largos, enquanto as  taxas de crescimento econômico se encolhem paulatinamente.

Já na segunda parte (“A dinâmica da relação capital/renda”) trata-se de analisar as metamorfoses do capital. Nos romances clássicos do século 19 a riqueza estava em toda parte, fundamentalmente sob forma de terras ou dívidas públicas; no século 21 as estatísticas demonstram que essa mesma riqueza volta a se concentrar, mas agora sob forma de imóveis e novos ativos financeiros. Essa dinâmica inclui, ainda, a conversão de riqueza pública em riqueza privada com o aquecimento dos mercados de títulos da dívida pública, assim como a transformação de capitais nacionais em capitais internacionais, com o avanço das inovações financeiras.

Mas nem só de metamorfoses vive o capital; há também que atentar para suas permanências. A despeito da mudança na natureza da riqueza, o valor do estoque de capital em anos de renda nacional permanece sem alterações substanciais no longo prazo – isso ocorre, pois um país que cresce pouco e poupa muito pode acumular um estoque significativo de capital. Nesse sentido, a estagnação e políticas ortodoxas fazem com que a riqueza acumulada no passado ganhe uma importância desmedida no presente, e disso resulta o risco de volta do capitalismo patrimonial, contrário à concorrência e ao mérito.

Em perspectiva histórica, os séculos 19 e 21 se aproximam como momentos em que a produtividade se amplia numa escalada mais veloz do que os salários. Esse fato se agrava ainda mais no século 21 quando se percebe que os salários oriundos do trabalho permanecem estacionados, ao passo que os hiper-salários dos superexecutivos crescem exponencialmente, aprofundando a concentração de renda e riqueza.

Na terceira parte do livro, por sua vez (“A estrutura da desigualdade”), o autor problematiza as estratégias de ascensão social prioritariamente utilizadas entre os séculos 19 e 21. Trata-se de demonstrar como no século 19 a ascensão pela educação, pelo trabalho e pelo mérito consistia num longo caminho que poderia ser antecipado pelo atalho da conquista da herança e da ampliação patrimonial – como deixam claros os romances de Balzac (França), Jane Austen (Inglaterra) e o filme ...E o Vento Levou (EUA) –, enquanto no século 20, em função das guerras, da crise e da concorrência socialista, a herança se reduziu a quase nada em comparação com o passado, e pela primeira vez na história os estudos e a labuta se tornaram a caminho mais seguro para alcançar o topo da pirâmide da distribuição de renda. Já no século 21, em função da liberalização financeira (que produziu os super-ricos) e da desregulamentação de direitos sociais e trabalhistas (que produziu mais pobres), a dinâmica patrimonial volta a ter maior peso e relevância.

Prova disso se dá a partir da análise mais minuciosa dos 10% mais ricos do topo da pirâmide social, compreendendo a existência de “dois mundos” entre eles: o mundo dos 9% mais ricos e o mundo do 1% mais rico. Quando se observa essa camada da população, o que se percebe é que passamos de uma sociedade de rentistas (a maior parte desses 10% vivia da renda do capital) para uma sociedade de executivos (a maior parte desses 10% vive da renda do trabalho). Isso mostra a criação de um mundo de grandes remunerações, muitos bônus e compartilhamento de dividendos entre uma pequena camada de gestores empresariais.

Essa sociedade patrimonial traz três grandes questões: por que a desigualdade de riqueza era tão extrema, e cada vez maior, até a Primeira Guerra Mundial?; por que, apesar de os patrimônios em seu conjunto terem voltado a se concentrar, no início do século 21 ainda não alcançamos aqueles recordes históricos de concentração?; e há algum indício de que a concentração de riqueza do século 21 pode voltar aos patamares do século 19?

O período que vai até a Primeira Guerra Mundial é marcado por uma presença bastante forte do papel das heranças, criando uma distorção na igualdade de oportunidades e de ascensão social. A guerra desorganiza a economia internacional e produz o encolhimento do papel dos capitais previamente acumulados, além de trazer junto consigo uma nova agenda relacionada à taxação das heranças e fortunas e a implementação de impostos progressivos a fim de (re)criar um clima de recomposição do capitalismo global.

Se no século 21 ainda não atingimos aqueles picos de desigualdade é porque existe atualmente uma classe média patrimonial que possui cerca de um terço da riqueza nacional, em rendimentos que são compostos por aplicações financeiras, aluguéis, imóveis etc. Além disso, a existência dos superexecutivos com seus altos salários traz distorções para a interpretação da composição e da diferenciação entre os frutos do trabalho e os frutos do capital.

Por fim, Piketty aponta que não há garantias para que a concentração de riqueza regrida aos patamares do século 19. A globalização financeira e a desregulamentação do mercado de capitais criam um cenário de fortalecimento do mercado e de enfraquecimento do Estado que pode concorrer para piorar os patamares civilizatórios de distribuição de renda e riqueza.

Nesse sentido é que se torna fundamental repor os debates sobre a justiça distributiva e as taxações sobre o topo da pirâmide social, tema, por fim, da quarta parte do livro (“Regular o capital no século XXI”).

Piketty reafirma o papel do Estado como ator econômico fundamental que pode atuar na melhora da desconcentração da riqueza e da renda a partir da implementação do imposto progressivo sobre a renda; no avanço das taxações das grandes fortunas, heranças e doações; e na criação de um imposto mundial sobre o capital.

Por fim, vale registrar: apesar de nem sempre trazer conclusões inéditas, o livro tem o inegável valor de sistematizar o debate e os dados sobre renda e riqueza lançando luzes para uma interpretação econômica mais ampla e mais viva. Nesse sentido escapa à pasmaceira hegemônica que reduz o debate sobre economia às discussões acerca do chamado tripé macroeconômico.

No entanto, as críticas contra a concentração de renda e riqueza e as defesas em favor de um Estado mais atuante se aproximam muito mais de uma avaliação social-democrata do que de um compromisso de transformação do capitalismo. Piketty é um reformador cuja obsessão é tornar o capitalismo algo mais civilizado, defendendo a real existência de livre concorrência, de livre empreendedorismo e da meritocracia como mecanismo de coesão e mobilidade social. Sua preocupação é menos com a igualdade plena e mais com a igualdade de oportunidades. Nesse sentido o livro se afasta da tradição marxista e se aproxima da linhagem de um Adam Smith, mobilizando argumentos social-democratas e liberais contra o neoliberalismo.

William Nozaki é professor de Economia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e coordenador do curso de mestrado profissionalizante em gestão de políticas públicas da Fundação Perseu Abramo (FPA)