Estante

O contencioso Brasil-Estados UnidosHoje, os debates acerca do Projeto Sivam e da Lei de Patentes exprimem novas facetas de uma velha controvérsia entre Brasil e Estados Unidos marcada pelo desejo de independência tecnológica por parte de setores do Estado e da sociedade brasileira. As primeiras escaramuças aconteceram na década de 40, quando o governo dos EUA se opunha à transferência da tecnologia de produção do aço. Um capítulo crucial desse confronto é tratado com singular competência por Tullo Vigevani em seu livro O contencioso Brasil vs. Estados Unidos da Informática - Uma análise sobre formulação da política exterior.

A apresentação minuciosa dos paradigmas teóricos das relações internacionais, vinculados ao contexto histórico e à praxis política, é a primeira contribuição deste instigante trabalho. Na obra de Vigevani, a interdependência, tema central no debate dos anos 80, reconhecida por todas as correntes de pensamento (neo-realistas e globalistas) como resultante da acentuação da importância dos fatores econômicos no cenário internacional nos anos setenta, constitui-se no eixo explicativo fundamental das relações Brasil-Estados Unidos.

A administração desta relação de interdependência, reconhecida como assimétrica, torna-se fundamental, considerando-se os riscos que correm os países em desenvolvimento de arcar com os custos dessa interdependência, enquanto os benefícios são usufruídos pelos países desenvolvidos. O presente estudo demonstra precisamente as falhas da parte brasileira na administração deste conflito. Reconhecendo a ancoragem do esquema teórico das relações internacionais na praxis e na perspectiva norte-americana, elabora-se a hipótese da estabilidade hegemônica como eixo estruturante da nova ordem internacional. Os interesses particulares da potência dominante passam, assim, a expressarem-se em termos de interesses gerais ou globais - bens públicos - e ficam plasmados nos regimes internacionais.

A angustiante indagação que o autor coloca a respeito da existência de bens públicos que efetivamente tenham esse caráter universal e o reconhecimento do valor democracia como "bem público que interessa a todos, inclusive e em particular aos trabalhadores de cada país" nos proporciona a dimensão do compromisso militante que permeia este trabalho. À guisa de proposição coloca-se a necessidade de repensar a soberania nacional e de aumentar a própria capacidade de negociação para enfrentar uma conjuntura internacional em que o contexto mundial intervém pesadamente em cada situação nacional.

O processo de formulação da política brasileira de informática foi gerado a partir de interesses particulares e distintos daqueles que os Estados Unidos tinham definido como funcionais ao seu objetivo de estabilidade hegemônica. Iniciado em fins de 1975 pelo Estado brasileiro para servir ao modelo de desenvolvimento em curso, culmina com a aprovação da Lei de Informática de 1984. Tinha como diretriz geral a defesa da capacitação nacional e da reserva de mercado.

Onde residiram as dificuldades de sua implementação? Na resposta a esta pergunta encontra-se a contribuição original de Vigevani que explora, exaustivamente, embasado em ampla pesquisa documental e testemunhal, as razões do fracasso desta iniciativa que agonizou nos braços do governo Collor.

A inexistência de uma política de Ciência e Tecnologia suficientemente articulada no estado e na sociedade é colocada como dado central do problema. Os setores empresariais que a defendiam enquanto política setorial eram, em geral, opostos a posições que eles julgavam nacionalistas. No governo houve setores fortemente posicionados contra a reserva de mercado encabeçados por Antonio Carlos Magalhães, Ministro das Comunicações na época. Por outro lado, a aliança política a favor da lei, que sustentou o debate nos anos 83 e 84, era frágil pela carência de mecanismos sociais e constitucionais que assegurassem níveis mínimos de coerência.

Este quadro configura, segundo Vigevani, "uma situação estrutural de debilidade negociadora" enquanto "os mecanismos centrais de formulação da política norte-americana no setor começavam a modificar-se, ganhando maior peso os chamados interesses gerais da nação".

Este valioso estudo, trilhando os descaminhos da política de informática, torna-se instrumento de trabalho imprescindível para todos aqueles empenhados na formulação e implementação de um projeto nacional, condição necessária para a consecução de uma política de autonomia tecnológica.

Ana Maria Stuart é professora do Curso de Política Internacional na Fundação Escola de Sociologia e Política de SP e ass. da Sec. de Relações Internacionais do PT.