Estante

O primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso passará à história como aquele que conseguiu debelar o processo inflacionário que vinha solapando a economia brasileira e que resistia a todas as tentativas de eliminação, por mais engenhosos que fossem o conjunto de medidas colocado em prática e a concepção que a diagnosticava.

Essa leitura do governo FHC já faz parte do currículo das melhores escolas de Economia do país. Contudo, esse mesmo governo foi também responsável pela desnacionalização acelerada de parcela significativa do patrimônio público; pela destruição de parte da cadeia produtiva; pela internacionalização do sistema bancário brasileiro; pelo endividamento do setor público, principalmente de estados e municípios; pelo nível de desemprego jamais visto; pelo aprofundamento da concentração da renda e da riqueza nas mãos de poucos; pela volta ao FMI; pela construção de um "equilíbrio macroeconômico" extremamente frágil, suscetível a qualquer alteração do humor do capital financeiro internacional; pelo início da flexibilização dos direitos trabalhistas e por investidas importantes contra o sistema previdenciário, entre outros.Tudo isso em nome da estabilização monetária e da inserção do Brasil na modernidade acenada pela globalização. Para sustentar sua legitimação continuada junto à população brasileira, foi criada uma rede de propaganda e marketing extremamente eficiente, formada pelos principais meios de comunicação do país.

O livro organizado por Ivo Lesbaupin trata de alguns desses aspectos. Não chega a ser um balanço completo do primeiro governo Fernando Henrique, mas é uma importante contribuição que, somada a outras já à disposição do público leitor1, permite se desvendar a verdadeira natureza do governo FHC, muito além da estabilização e dos pretensos valores da modernidade propagandeados pela mídia.

Já pelo título escolhido é possível sentir o peso dessa contribuição. De fato, várias das políticas implementadas pelo governo FHC estão destruindo instituições e direitos que associamos ao processo de construção do Estado nacional brasileiro. No imaginário do cidadão coletivo, até pouco tempo, além da bandeira, do hino nacional e do futebol, empresas estatais como a Vale do Rio Doce e a Petrobrás, bem como a Previdência Social, a carteira assinada e todos os direitos sociais e trabalhistas delas decorrentes eram vistos como algo nacional, produzidos no bojo da industrialização brasileira e da construção do Estado-Nação. Nos anos 70, por exemplo, em plena ditadura militar, seria inimaginável ver alguém defendendo o fim das contribuições patronais, a flexibilização da CLT ou a venda da Petrobrás.

Como bem é lembrado em vários dos artigos que compõem essa coletânea, não foi Fernando Henrique que começou o desmonte da Nação. Esse demérito deve ser atribuído ao outro Fernando, que saiu de cena por transgredir as regras da própria classe dominante e não pela concepção que orientava sua política econômica e social. O "louco" e o "príncipe" têm em comum o entendimento de que somente o mercado é capaz de promover a produtividade e a qualidade dos produtos e serviços de qualquer natureza. Por isso, promover a abertura comercial indiscriminada, sem nenhum cuidado com relação ao parque produtivo instalado. Por isso, desnacionalizar o patrimônio público, pois além de sua venda angariar recursos para pagar a dívida externa, a passagem para o setor privado é tida como condição essencial para sua modernização. Não dizem os defensores do mercado sem freios que a legislação pública - que garante estabilidade de emprego ao funcionário e exige licitação, por exemplo - constitui entrave às medidas racionalizadoras de custo e não está de acordo com a exigência do mundo globalizado que exige decisões rápidas e imediatistas? Também por motivos semelhantes defendem a redução do campo da ação pública em relação à previdência social, à saúde e à educação.

A política econômica do governo FHC, da qual decorrem todas as outras políticas, é analisada por Paul Singer no artigo "A raiz do desastre social: a política econômica de FHC". Além de esmiuçar as bases teóricas que levaram à implementação do Real, explora o papel assumido pela âncora cambial e a taxa de juros na sustentação da estabilidade e, principalmente, denuncia como a continuidade dessa política levou a economia brasileira a ficar extremamente fragilizada com relação ao movimento especulativo do capital financeiro internacional, o que resultou no retorno do monitoramento realizado pelo FMI.

Num primeiro momento, o fim da espiral inflacionária levou ao aumento do poder de compra da camada menos favorecida da população, que não tinha como se defender da corrosão de sua renda. Reinaldo Gonçalves, em "Distribuição de riqueza e renda: alternativa para a crise brasileira", mostra que essa melhora foi apenas passageira, tendo aumentado a parcela da população abaixo do nível da pobreza após 1996. Isso garantiu a manutenção do Brasil no ranking dos países de pior concentração de renda e riqueza, o autor defende o uso da taxação da riqueza como o instrumento mais eficiente para promover a desconcentração da renda no país.

Jorge Mattoso, por sua vez, em "Produção e emprego: renascer das cinzas", enfoca a precarização do mercado de trabalho ocorrida durante o primeiro governo FHC. Além das elevadas taxas de desemprego, aponta a ampliação da informalidade e a queima de postos no mercado formal de trabalho. Dentro desse quadro, lembra o quanto é surrealista, para dizer o mínimo, o fato de o único instrumento de combate ao desemprego proposto pelo governo ter sido a desregulamentação do mercado de trabalho. Isso, é claro, quando não mais pôde deixar de reconhecer o desemprego como uma realidade que afetava parcela significativa da população, formada por trabalhadores menos ou mais qualificados.

Já Maria Lúcia Wernek, em "As armas secretas que abateram a securidade social", discute como as "verdades" propagadas pela retórica do pensamento neoliberal foram usadas para destruir a idéia de seguridade inscrita na Constituição de 1988 e para vender a necessidade de uma reforma radical da Previdência Social. Na mesma linha de preocupação está a contribuição de Bernardo Kucinski. Além de denunciar como a mídia tornou-se subserviente ao governo federal, mostrando que a notícia é dada e editada em função de seus interesses "estratégicos", introduz questões importantes que merecem uma reflexão cuidadosa por parte de todos aqueles interessados na construção da democracia.

Esses são apenas alguns exemplos do que os leitores podem esperar ao se proporem a ler O desmonte da nação. Há ainda os artigos de Fábio Konder Comparato, de José Paulo Netto, de Lúcia Neves e de Sérgio Leite. A desfiguração da Constituição de 1988; o caráter residual concedido pelo governo federal às políticas sociais; o descaso em relação à questão agrícola e a política educacional do governo Fernando Henrique são os temas tratados por esses autores.

Alguns artigos certamente foram escritos no auge da crise cambial, o que influenciou parte de suas análises, dando-lhe um caráter conjuntural. Também seria interessante que, para próximas tiragens, houvesse um cuidado maior na revisão, inclusive nas tabelas. Isso, no entanto, não compromete o conjunto da obra. É uma contribuição importante que permite desvendar as entranhas do governo FHC. Da reflexão que propicia, é possível se traçar diretrizes para um país mais justo e democrático.

Rosa Maria Marques é presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP) e professora do Departamento de Economia da PUC-SP