Estante

O enigma chinês - capitalismo ou socialismoA China foi descoberta com admiração pelos brasileiros através do best-seller Henfil na China — antes da Coca-Cola. Dez anos depois da Coca-Cola surge um novo livro, que trata essencialmente de explicar as razões da guinada após a morte de Mao em 1976. Em O Enigma Chinês – Capitalismo ou Socialismo, Wladimir Pomar confessa que pretendia escrever uma reportagem de suas duas viagens à China, em 81 e 84, mas que acabou enveredando pela discussão do processo de transição socialista — sempre referido, é claro ao caso chinês. Incrível, mas é o primeiro livro de análise em profundidade da China, de autor brasileiro.

Trata-se de uma empreitada ousada, por vários motivos: a falta de informação e a desinformação, o caráter recente das reformas na China e em outros países socialistas; no caso do autor, acrescente-se a indigesta tarefa de um acerto de contas com o maoísmo e sua criatura, a revolução cultural, defendidos por duas décadas pelo PCdoB, partido no qual Pomar militou. O PCdoB hoje condena ou prefere esquecer seu alinhamento chinês.

Já Pomar enfrenta a empreitada; reavalia negativamente a revolução cultural (um processo que teria começado como tentativa de democracia direta, descambado rapidamente para a anarquia e se consolidado como o arbítrio de um pequeno grupo), e vê positivamente as reformas de Deng Xiaoping (a "retomada do curso" da construção socialista interrompida vinte anos antes, a aplicação desenvolvida da NEP-Nova Política Econômica de Lenin).

Não se pense que o livro reduz Mao a pó. Nem na China isto aconteceu. No seu mausoléu as filas de visitantes ainda são quilométricas. Desapareceram o livro vermelho e as estátuas, mas as próprias autoridades do PC tentam se explicar: "defendemos o Mao dos 4 primeiros volumes das obras escolhidas e condenamos o Mao do 5º volume — o que traz a obra produzida depois da tomada do poder em 1949".

Pomar enfatiza o papel de Mao nos dois primeiros capítulos de seu livro, ao relatar o processo de três décadas, o que teria acontecido com o grande timoneiro, o genial estrategista militar e revolucionário criador da linha de massas no PC chinês?

Em poucas palavras, Mao teria virado um "ultra-esquerdista". Obviamente, Pomar não taxa de maneira simplista, mas sim opõe sua própria concepção do primado das forças produtivas sobre as relações de produção à concepção que ele atribui a Mao de que "se eliminam as forças espontâneas do capitalismo através da ideologia".

As contradições entre as duas concepções em cada momento da história da nova China consomem a maior parte das 370 páginas de O Enigma Chinês. No entanto, talvez pela dificuldade de acesso às informações, não se mencionam oposições ou dissidências na China de Deng Xiao Ping, isto é, desde a prisão da "gang dos quatro" em 1976. Não fica claro o que está por trás das disputas entre os setores que a imprensa ocidental chama de "conservadores e liberais" na direção do PC. Os males da burocracia e as limitações da liberdade e da democracia na China são admitidos em alguns trechos do livro, mas a ênfase maior é dada ao vigor adquirido pela economia com as reformas de Deng.

Pomar aceita que a formulação "socialismo de mercado" não é nenhuma heresia, mas uma etapa necessária da construção socialista em países atrasados, na sua opinião um caminho mais seguro e realista que o ardor ideológico e igualitarista, para se chegar ao socialismo. Acabou a luta de classes? As relações econômicas com o imperialismo não são mais perigosas? Essas questões são bastante relativizadas em benefício dos resultados da economia.

Realmente, os dados do crescimento são significativos, principalmente da produção agrícola e do poder aquisitivo dos camponeses e pequenos comerciantes, após a descoletivização da agricultura e a liberalização do pequeno comércio e indústria privados. Sinólogos de diferentes tendências "descobrem" — será um consolo? — que a descoletivização da agricultura não pode ser considerada um recuo, pois o que se chamou de coletivização não passou em geral de um grande mutirão baseado no cabo da enxada. O baixo estágio de desenvolvimento das forças produtivas no campo chinês não permitia, na maior parte das regiões, a cooperação complexa que caracteriza relações de trabalho socializadas. A volta à produção familiar porém não pode ser encarada como alternativa permanente. Multiplicam-se os assalariados no campo — e na cidade —; não há sindicatos para nenhuma categoria de trabalhador rural. Informações oficiais revelam que entre os camponeses que mais se enriquecem destacam-se os membros do PC, que estimula tal desempenho. Apesar de reconhecer alguns destes perigos, perpassa o livro a confiança nas intenções dos dirigentes do PC chinês de evitar a volta ao capitalismo.

Ainda é cedo para dar o veredicto, insiste Pomar. E nós acrescentaríamos algumas questões polêmicas: não é porque a revolução cultural não resolveu todos os problemas dos trabalhadores chineses que seus opositores — a corrente denguista —automaticamente vão resolver. A Polônia não coletivizou as unidades camponesas e vive grave crise econômica e política. A Iugoslávia permite há anos a atuação das empresas estrangeiras e é um dos maiores exportadores de mão de obra barata para a Europa capitalista. A direção do PC chinês libera as iniciativas empreendedoras na economia e reprime as manifestações pela liberação política. Isto não pode ser chamado de arbítrio?

Enfim, a China é muito complexa e os países socialistas estão todos passando por transformações marcantes. Decifrar o enigma chinês significa compreender não só um processo que envolve um quinto da humanidade mas que tem repercussões mundiais. O livro de Wladimir Pomar representa uma importante contribuição nesse rumo.

Marília Andrade é diretora do jornal Gazeta de Pinheiros e é colaboradora do Instituto Cajamar. Visitou a China alguns anos atrás.