Estante

Os anos de chumbo no Brasil marcaram uma geração que, despojadamente, colocou em risco a própria vida - e não foram poucos os que tombaram -, em busca de uma utopia, do homem novo que exigia uma nova concepção de moral e ética, de justiça social, de uma nova sociedade socialista e libertária.

A derrota de todas as concepções revolucionárias, somada ao fracasso do socialismo real, exige que se repense o que significa, nos dias atuais, ser revolucionário. É dentro desse contexto que Marcelo Ridenti, em O fantasma da revolução brasileira procura o passado recente para lançar as perguntas: "Os partidos identificados com os trabalhadores, nos dias de hoje, terão melhor sorte que as esquerdas nos anos 60 e 70? Os próprios trabalhadores brasileiros conseguirão constituir a sua representação política enquanto classe?"

Com a preocupação de se recuperar também a análise de classes e suas formas de representação, Ridenti parte para o estudo da composição social e das bases sociais das organizações e partidos de esquerda que atuaram naquele período. O período sobre a participação de operários, em particular os episódios de Osasco, assim como a participação das mulheres, ex-militares subalternos e camponeses, foi baseado nos números que aparecem nos processos movidos pela Justiça Militar. E, esses números foram enriquecidos por depoimentos de ativos militantes daquele período. O resultado, apesar de revelador, não é surpreendente. Ele constata a indiferença e o distanciamento das bases sociais. As mesmas que deveriam ser as maiores interessadas no sucesso do processo revolucionário conduzido pelas "vanguardas" que se autodenominavam representantes das classes exploradas, independente das disputas quanto ao caráter, à estratégia e ao programa dos agrupamentos armados ou não. Afinal, as divergências eram tão sutis que não poderiam ser compreendidas pelos estratos sociais mais desinformados.

Ridenti explora outros e novos ângulos. A agitação cultural-revolucionária dos anos 60 é analisada com riqueza e perspicácia, revelando contradições pouco difundidas no campo da esquerda. O autor recupera uma frase profética de Caetano Veloso, num festival de MPB, em 1968, quando a platéia vaiava a canção É proibido proibir: "...Vocês não estão entendendo nada... Se vocês em política forem como são em estética, estamos feitos." Creio que "estamos fritos" seria mais verdadeiro.

Eu me lembro que nesse mesmo período Caetano receberia uma chuva de ovos e tomates em um show de música tropicalista realizado na FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP). Esse episódio é emblemático porque mostra como a arte transborda e supera os estreitos limites conjunturais. A esquerda, que hegemonizava os movimentos, em particular o estudantil, não foi capaz de entender toda a riqueza daquele momento. Enquanto que, por outro lado, a indústria cultural que se desenvolvia rapidamente no Brasil, procurou, com relativo sucesso, cooptar e manipular, com interesses única e exclusivamente comerciais, a produção cultural inspirada naqueles movimentos hegemonizados pela esquerda.

Ridenti tangencia um tema que mereceria um estudo específico: como que os grupos guerrilheiros, em nome da segurança do seu grupo, criaram verdadeiros tribunais que decidiam sobre a vida e morte de seus companheiros. São inúmeros os casos de "justiçamentos", recurso semântico para explicar assassinatos a sangue frio de companheiros que ousaram pensar diferente e, mais grave ainda, revelar seus pensamentos. O caso mais gritante é, sem dúvida, o assassinato de Márcio Leite de Toledo, fuzilado em um "ponto", por um comando da ALN, porque, ao revelar suas divergências com a linha política da direção da qual fazia parte, estaria colocando em "risco" a segurança da própria organização.

O fantasma da revolução ainda ronda os corações e mentes da esquerda brasileira. O livro de Ridenti é uma leitura obrigatória para quem quiser entender e superar os obstáculo impostos pela sua existência.

Paulo de Tarso Venceslau é membro do Conselho de Redação de T&D.