Estante

ohomemqueamavaoscachorros.jpgO livro de Leonardo Padura – O Homem Que Amava os Cachorros – é um bólido de milhões de sentidos. Cada leitor é único, sempre. Há em cada pessoa um acervo cultural e de vida a puxá-lo em algumas direções, a envolvê-lo, a enredá-lo na trama e nas armadilhas do autor. Padura revela uma impressionante capacidade narrativa, de construção densa, fina dos personagens, revela um século trágico. O breve século 20, como o denominou Hobsbawm, foi palco não só de duas guerras mundiais, o que não é pouco, como também de duas experiências terríveis para o destino dos povos de todo o mundo – o nazifascismo e o stalinismo.

O Homem Que Amava os Cachorros é um romance histórico, fruto de uma pesquisa de muitos anos, capaz de provocar a reflexão, a partir do episódio do assassinato de Trotski, em torno da “perversão da grande utopia do século XX”. Não, não se queira, como óbvio, uma reflexão teórica. Um romance é só um romance. Só que a ficção, ao tangenciar a realidade, ao revelar o real sem o compromisso do historiador, embora com responsabilidade, como nesse caso, sempre tem uma enorme capacidade de captar a história na singularidade de cada personagem e de provocar sentimentos e pensamentos e sensações inalcançáveis à teoria estrito senso.

Está certo Paulo Leminski em sua curta e instigante biografia de Trotski: os artistas vão mais fundo que os colecionadores de dados e datas. Por isso, aconselha: se quiser entender a Rússia, não perca tempo lendo manuais de história. Comece logo lendo Os Irmãos Karamázov, de Dostoievski.

Quem passou pelo século 20 ou parte dele, quem nasceu ali pelas cercanias do fim da Segunda Guerra Mundial, quem passou e passa pela experiência da militância política, quem acreditou na Revolução Russa, quem mal se perguntou sobre a barbárie do assassinato de Trotski, quem nem tomou conhecimento de Ramon Mercader, o assassino do comandante do Exército Vermelho, quem passou por tudo isso, ao percorrer as quase seiscentas páginas do livro, dificilmente sairá ileso da leitura. O romance produz um balanço amargo, cru, sem retoques, da utopia prometida pela Revolução de 1917, transformada num genocídio sob as mãos de Stalin. Mexe com nossas vísceras.

Há, como se sabe, uma leitura vastíssima a respeito do stalinismo e uma discussão ainda incompleta sobre o legado da experiência soviética, um legado trágico, marcado sobretudo pelo terror stalinista. Mais do que isso, na linha do que dissera Rosa Luxemburgo, desde o nascedouro: com aquele grau de autoritarismo a experiência estava condenada ao fracasso. Assim, não se pode atribuir apenas a um homem a responsabilidade pela tragédia, embora ele fosse seu principal autor, mas a uma concepção, a uma matriz que, à guisa de realizar a ditadura do proletariado, produziu uma camada dirigente autoritária, discricionária, que acabou de fato reprimindo o próprio proletariado e o povo russo. Há aqueles que argumentam pudesse ser outra a história tivesse Lênin vivido mais tempo, e é possível que, sob alguns aspectos, sim. O fato histórico, no entanto, é que o modelo acabou por produzir um tirano, sem tirar nem pôr. Aquele modelo político produziu o monstro.

Para mim, foi a leitura de Gramsci, na prisão e fora dela, a chave para começar a compreender o processo revolucionário de outra maneira. Compreender a complexidade da revolução no Ocidente. A guerra de posição contra a ideia da guerra de movimento. A importância da luta pela hegemonia. A luta por valores, por mudanças culturais, como componentes fundamentais da luta política. Saber que o caminho é longo. Que a política revolucionária cobra sempre alianças. Que a democracia é o leito fundamental das transformações. Que há avanços e recuos.

O stalinismo ficou como uma marca fortíssima do século 20. Não podemos fazer de conta de que não tivemos nada com isso, ao menos nós, os que nasceram perto do fim da Segunda Guerra. Mesmo que teoricamente pudéssemos contrariar as noções advindas do stalinismo, demorou para que assumíssemos posições solidamente ancoradas na ideia da democracia como valor universal, que assumíssemos o socialismo como resultado da luta democrática. Assumíssemos é modo de dizer. Sei que essa é uma particular compreensão da luta política, defendida por mim.

O romance histórico tem a vantagem de mexer nas feridas. Não usa luvas de pelica. Não teme o confronto. São seus personagens que falam, sofrem, se angustiam, acertam, erram. Escolhem seus caminhos, ou são levados pelo sistema, pela ideologia, a percorrer caminhos desconhecidos e nem sempre com tanta convicção. Seus dois protagonistas são Trotski e seu assassino, Ramon Mercader.

Minha surpresa é mais pela história do assassino do que pela de Trotski, afinal um dirigente comunista conhecido. Não vamos nos defrontar com um criminoso puro e simples, embora o seja. Vamos encontrar um comunista dedicado, revolucionário espanhol, filho de mãe comunista, empenhado em mudar o mundo, na luta pelo socialismo. Ele, como Trotski, tinha um carinho especial por cachorros. Os dois amavam os cachorros.

Padura constrói o personagem Trotski já saindo da União Soviética, expurgado por Stalin. E o personagem Mercader a partir da guerrilha da Guerra Civil Espanhola, respondendo à pergunta da mãe se aceitava uma tarefa cuja natureza só saberia mais tarde – o sim dado nas montanhas espanholas definiu toda a sua vida. Impressiona a natureza metódica da perseguição a Trotski promovida pelo stalinismo: como ele foi levado ao isolamento político, como foi submetido a sofrimentos pessoais inimagináveis, como sua família foi sendo eliminada.

E é notável ainda o sentido trágico do personagem. Trotski, desde a saída forçada da União Soviética, experimenta cada dia da vida com a certeza de que mais cedo ou mais tarde será eliminado por ordem de Stalin. Sabia não ter como fugir desse destino, por mais que, no México, sobretudo, procurasse se cercar de um forte aparato de segurança. Era a escrita, a produção teórica incessante que o mantinha aceso, vivo, produtivo, apesar de ser um homem marcado para morrer e de viver por isso quase numa prisão. Combatia quase que solitariamente o que considerava o descaminho da revolução em seu país e enfrentava a ira dos comunistas do mundo todo, ao menos daqueles vinculados aos PCs seguidores da tradição da III Internacional. Sua IV Internacional era uma organização sem qualquer expressão.

Curioso observar Trotski defendendo a mais ampla liberdade de expressão e criação, contra a opinião do surrealista André Breton, que esteve com ele no México, para quem a liberdade só não podia permitir ataques à União Soviética. Justo ele, o duro comandante do Exército Vermelho, tornava-se um defensor das liberdades no plano da arte, sem quaisquer restrições. No México, tem um breve romance com Frida Kahlo, rompido pela artista por acreditar que não devia ferir Natália, companheira do revolucionário.

Mercader é transformado em Jacques Mornard, um belga refinado, apolítico, de modo a evitar quaisquer suspeitas. É submetido na União Soviética a um treinamento intenso, a sessões psicológicas que sepultassem a outra personalidade, permitissem a assunção da nova. Encarava o assassinato de Trotski como uma grande tarefa histórica – iria eliminar um poderoso inimigo da revolução, do proletariado mundial. Em agosto de 1940, Mercader cumpre sua missão a golpe de picareta, como sabido e consabido. Passa vinte anos na prisão, sem dizer nada.

Os sobreviventes, um membro das forças de inteligência da URSS e o próprio Mercader, produzem um balanço melancólico da utopia pela qual lutaram. E esse balanço aterrador não é fruto apenas da imaginação criativa do autor. A experiência soviética, anunciada como redentora da humanidade, promessa de socialismo, caminhada para o comunismo, transformou-se no seu oposto: violência, ditadura, assassinatos em massa, uma revolução que devorou seus melhores filhos. Mesmo para quem já passou por reflexões críticas sobre a Revolução Russa, para quem não acredita mais em data marcada para a revolução, para quem a vê como um longo processo a contar com o imprescindível protagonismo dos de baixo, não é livro a trazer conforto. Ao contrário, só produz desconforto, provoca ebulições na alma.

Reclama do leitor, ao presenciar a perversão da utopia pela ação dos personagens, que recuse promessas milagrosas e simultaneamente, à Hannah Arendt, acredite no milagre da política, renove as esperanças na humanidade. Ou, então, na pior hipótese, confirme o descrédito nas mudanças do mundo, caminhe para a direita, como tantos desesperançados o fazem. Se quisermos, e talvez seja o melhor caminho, pensemos na fórmula de Romain Rolland, recuperada com ênfase por Gramsci: pessimismo da inteligência, otimismo da vontade. Capacidade crítica para analisar situações concretas. Disposição para modificá-las com o protagonismo central e decisivo das maiorias.

Inegavelmente, Padura produziu um extraordinário romance e, para muitos de nós, insista-se, um livro incômodo. Ainda bem. Só a boa literatura incomoda.

Emiliano José é professor-doutor (aposentado) em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia, jornalista, escritor e integrante do Conselho de Redação de Teoria e Debate