Estante

A tese central do livro de Paulo Cezar é corroborada pela crise que hoje atinge o PT. Ele diz que o marketing político pode trazer a vitória numa eleição, mas não traz a hegemonia, no sentido gramsciano do termo. “Ao substituir a idéia da conquista do poder e, portanto, da política, pela noção de troca, ao operar desde cima e unilateralmente no que diz respeito ao processo comunicativo, o marketing profissional que o PT adotou no médio prazo acabaria por ser contrário aos seus objetivos de conquista de hegemonia na sociedade brasileira.”

Foi o que aconteceu. Ou assim parece. Contratamos Duda Mendonça e ganhamos. Mas bastou uma acusação de um deputado até então sem notoriedade para desencadear sobre nós todo o poder das elites sobre o complexo de mediações que definem a hegemonia no Brasil – e fomos esmagados. Derrotadas nas urnas, as elites aproveitaram a oportunidade dada pelo testemunho de Roberto Jefferson e desfecharam uma operação de dimensões estratégicas, com o objetivo explícito de “acabar com a raça do PT”. Quase conseguiram. Perdemos, inclusive, os espaços que já havíamos conquistado nas mentes e corações de grande número de brasileiros não necessariamente petistas, ou socialistas, ou operários, mas que sentiam que falávamos por eles. Emblematicamente, o próprio instrumento da nossa vitória de marketing, Duda Mendonça e os recursos usados para recrutá-lo, forneceu a munição para o bombardeio de saturação contra o PT e o governo Lula.

O livro, portanto, é muito atual. Mas é em parte romântico, ou purista, talvez porque alguns de seus ensaios tenham sido escritos na era romântica do PT, quando todos nós vendíamos estrelinhas de cinco pontas e comemorávamos a conquista da primeira prefeitura, ou do primeiro vereador.

Marqueteiros como Duda Mendonça, pesquisas de opinião, produção esmerada de peças de propaganda e esquemas pesados de financiamento de campanhas são parte integrante de quase todas as campanhas eleitorais nas democracias de massa nos tempos atuais. E a democracia brasileira é uma das maiores democracias de massa: são mais de 110 milhões de eleitores, a maioria deles de baixa escolaridade, como enfatiza Paulo Cezar, espalhados num território de dimensões continentais, incluindo uma dezena de grandes regiões metropolitanas de alta complexidade social. Os meios de comunicação de massa nessa democracia de massa substituem a praça pública. Em especial a televisão, que chega ao mesmo tempo em todos os lares, bares, botecos e salas de espera do país. A televisão é uma gigantesca praça pública virtual.

A única forma de disputar o voto nesse tipo de configuração, em tempos normais, é por meio da televisão e, em segundo lugar, do rádio. E isso só pode ser feito profissionalmente. Portanto, não foi a opção pela profissionalização em si que nos levou à crise. Não foi o abandono dos meios alternativos. Mesmo porque eles não foram abandonados. Lula participou de comícios gigantescos em todo o país e continuamos vendendo nossas famosas camisetas, cada vez mais criativas, e nossas estrelinhas do PT. Mas esses meios alternativos e até mesmo as atividades de conscientização ou proselitismo pelos movimentos sociais, igrejas e sindicatos são apenas acessórios nos grandes embates pelo voto, numa sociedade de massa.

Ainda que conseguíssemos criar uma esfera alternativa à esfera convencional, não estaria resolvido o problema da luta pela hegemonia dentro da esfera pública dominante constituída pelos meios de comunicação de massa. Testamos esse limite nas Caravanas da Cidadania, na campanha de 1994, a “última grande tentativa do PT de desenvolver uma operação de propaganda política na contracorrente do marketing e da publicidade”, lembra Paulo Cezar. Os tucanos perceberam seu potencial e conseguiram proibir o uso das externas das caravanas na campanha eleitoral.

Se não se pode fugir do mar­keting, o que fazer? Paulo Cezar acha que pode haver um marketing eleitoral fundado na verdade e na conscientização, um “marketing participativo”. Sua tese é de que o marketing convencional é um método de intervenção no mercado de cima para baixo, criado para reduzir os riscos do investimento capitalista. Esse tipo de marketing seria antagônico à política, porque “política, seja ela qual for, de esquerda ou de direita, mas principalmente de esquerda, é uma atividade dinâmica e participativa”. O livro sustenta que o marketing político tradicional é “profundamente despolitizador”, mas não aprofunda a proposta do que seria o marketing participativo, apenas sugere que nele haveria o predomínio da política sobre o marketing na organização da campanha e no aproveitamento dos dados de pesquisa. Paulo Cezar não se opõe ao uso da linguagem emotiva numa campanha.

Cita, apoiando, o próprio Duda Mendonça: para entrar na sala de uma família entre a novela e o jogo de futebol, você precisa usar a emoção. Ele também distingue a comunicação que disputa o voto em tempo de campanha da comunicação cotidiana de um partido que constrói hegemonia. A construção de hegemonia é processo necessariamente lento, de conscientização, no qual comunicação e mobilização andam lado a lado, no mesmo ritmo. Uma campanha é uma guerra, e o único critério de conduta na guerra é o da vitória.

Na campanha eleitoral todo dia há uma batalha a ser vencida, na qual todos os estratagemas são válidos, inclusive, sobretudo, a promessa. Paulo Cezar reconhece que, para vencer, você precisa prometer. Mas prometer o quê? Aí começam os problemas. E se o adversário prometer em dobro? Paulo Cezar chama a atenção para o fenômeno da convergência das propostas dos vários candidatos numa campanha eleitoral de uma democracia de massa. De fato, se todos eles partem não de um programa de governo politicamente definido pelo partido, mas de pesquisas que detectam o desejo do eleitor, como poderiam fazer propostas diferentes? Há uma cena do filme argentino Memoria del Saqueo, de Fernando Solanas, em que perguntam a um político “porque Menem há prometido tanto y no há hecho nada, porque há mentido?”, e ele responde, “mire, en la política, es fundamental la mentira, para gañar los votos usted tiene que mentir, tiene que prometer y prometer más que el adversário...si usted lo va a cumplir es otra cosa, no importa...” De forma que não podemos culpar Duda Mendonça pelas promessas não cumpridas de campanha, ou por algumas delas serem exatamente as mesmas prometidas por Paulo Maluf, como a “farmácia popular”, ou pela hipocrisia, como lembra Paulo Cezar, de um ex-marqueteiro de Maluf propor o “Xô corrupção”. O buraco é mais embaixo.

Nosso problema não foi a profissionalização da campanha, e sim o abandono, que não era necessário, do projeto cotidiano de construção de uma hegemonia. De campanha em campanha, a cada dois anos e cada vez mais profissionalizada, esquecemos a hegemonia. Esse processo atingiu seu apogeu na campanha da Marta em São Paulo, em 2000, em que pela primeira vez os militantes do partido foram dispensados porque era mais fácil pagar meninos e meninas pobres da periferia para girar as bandeirinhas do PT, exatamente como giravam as de Maluf. A campanha da Marta enterrou de vez a fase romântica do PT e expôs com rudeza o esgotamento de nossa proposta de hegemonia baseada numa “ética na política”.

Ora, ética na política é uma contradição essencial, como sabe qualquer estudante da política. A política só se tornou a ciência da conquista e manutenção do poder, definindo métodos e princípios operacionais, quando se livrou da ética. A política não tem ética e não deve ter. Por isso, o nome do fundador da política como ciência, Maquiavel, virou sinônimo das trapaças, dos estratagemas, das mentiras e principalmente do desprezo pelo sentimentalismo que caracterizam o político competente.

A ingenuidade que perpassa algumas passagens do livro de Paulo Cezar é a ingenuidade de todos nós petistas de primeira hora, que acreditávamos na ética na política e vendíamos estrelinhas achando que elas financiavam as campanhas. Não percebemos que, ao erigir ética como nossa bandeira principal, estávamos encobrindo a falta de um programa político claro que pudesse somar todas as tendências do PT, desde os cristãos antiaborto até os marxistas da DS.

A falta do programa acabou sendo suprida por quem tinha programa e uma agenda bem precisa e profunda de reformas. Assim nasceu a Carta ao Povo Brasileiro, apresentada a princípio como um recurso tático para apaziguar o capital financeiro, mas que logo se tornou o fundamento de toda a nossa política macroeconômica. Perto dessa virada, que importância têm as promessas de farmácia popular de Duda Mendonça? Nenhuma. Essa menção é importante no contexto de uma discussão sobre comunicação de governo, porque não adianta ter clareza sobre o papel hoje estratégico da comunicação na política se não temos clareza sobre a própria política.

É preciso também distinguir comunicação de governo de comunicação de partido. “Uma das piores confusões consolidadas no PT nos anos Duda Mendonça foi a mistura de comunicação partidária, governamental, parlamentar e eleitoral”, diz Paulo Cezar. A principal diferença é que numa campanha o candidato quer ser o escolhido pelo eleitor. Para isso usa a linguagem da sedução, a propaganda. “A essência do marketing político é a venda do candidato/produto ao consumidor/eleitor”, define Paulo Cezar. Um governo, seja ele uma prefeitura, governo de estado, seja a Presidência da República, não precisa disso porque já foi escolhido, já foi eleito. O que ele precisa é explicar o que está fazendo, o que deixou de fazer e por que deixou de fazer.

E um partido? Um partido como o PT precisa usar a informação como arma de embate ideológico, conscientizar, tendo como objetivos a construção interna de um programa e a construção externa de uma hegemonia.

Um governo tem a obrigação de informar do modo mais pleno e menos ideológico possível. Faz parte de seus deveres informar o público. Isso não tem nada que ver com propaganda e não deveria usar a linguagem da propaganda. Infelizmente a linguagem da propaganda é a única que sabem usar hoje nossos governantes, petistas ou não. Toda a máquina de divulgação dos governos está intimamente ligada ao mundo da publicidade. Até porque, na maioria dos casos, as agências que fizeram a campanha do governante eleito serão as que receberão os contratos de publicidade do governo. Assim, a propaganda flui como a solução natural, ainda que comprovadamente de baixa eficácia, para todos os problema de comunicação. O jornalismo é relegado a segundo plano ou ignorado, apesar de sua crescente importância na determinação da agenda política.

Bernardo Kucinski é jornalista, professor licenciado da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), assessor da Presidência da República