Estante

Freqüentemente, a imprensa afaga os sentimentos patrióticos do nosso público leitor, celebrando o êxito de alguns dos nossos compatriotas no exterior. Costumam ser lembrados com orgulho nomes como os de Santos Dumont, Carmem Miranda, Ayrton Senna, Jorge Amado, Pele, Oscar Niemeyer, Paulo Coelho e alguns outros. Pessoalmente, gostaria de sugerir que vejo nessa lista uma grande injustiça: a omissão do nome de Michael Löwy.

Löwy vive e trabalha em Paris há trinta anos. Seus numerosos livros e artigos têm sido traduzidos em 22 idiomas. Atualmente,é diretor de pesquisa no Centre National de Ia Recherche Scientifique. E é um pensador marxista rigoroso, respeitado e admirado em alguns dos ambientes universitários mais exigentes, no mundo inteiro.

Pois bem: apesar dessa inserção bem-sucedida na vida política e cultural européia, Michael Löwy permanece atento ao que se passa na América Latina e, especialmente, no Brasil. Filiado ao Partido dos Trabalhadores, aproveita todas as ocasiões em que vem ao nosso país para participar das atividades da agremiação. E escreve regularmente para o jornal Em Tempo.

Coerente com sua opção revolucionária (à qual permanece fiel ao longo dos últimos quarenta anos), insiste sempre em traduzir seu pensamento na ação e se recusa a desligar a teoria da prática.

Agora, está lançando no Brasil um livro cuidadosamente traduzido por Cláudia Schilling e Luís Carlos Borges, intitulado O Marxismo na América Latina: Uma antologia de 1909 aos dias atuais.

Michael Löwy, nesse volume, reuniu textos que vão do tempo dos pioneiros (o argentino Juan Bautista Justo, o chileno Luís Emilio Recabarren) até recentíssimos escritos do brasileiro Frei Betto, do cubano Fernando Martinez Heredia e do mexicano subcomandante Marcos, entre muitos outros. Seu objetivo foi o de proporcionar um panorama do processo histórico da reflexão da esquerda sobre o caráter da revolução necessária para as sociedades latino-americanas.

Para Löwy,o marxismo latino-americano tem por vezes oscilado entre duas unilateralidades: a fetichização da nossa singularidade, com uma supervalorização das nossas raízes índias, originais; e a assimilação a crítica, a cópia de formulações correspondentes ao contexto europeu, em nome de uma universalidade doutrinária abstrata.

Por outro lado, atravessamos - esquematicamente - três períodos. Primeiro, um período revolucionário,que abrange os anos vinte e a primeira metade dos anos trinta e cujo expoente é o grande pensador marxista peruano José Carlos Mariátegui. Depois, veio o período que Löwy chama de stalinista, marcado por uma codificação doutrinária imposta pela União Soviética aos partidos comunistas oficiais no mundo todo. E num terceiro momento veio, a partir do impacto da Revolução Cubana, uma reanimação do espírito revolucionário, simbolizado na figura de Che Guevara.

A seleção dos textos recolhidos na antologia não se fixou na qualidade ou na densidade especificamente teórica dos escritos, embora alguns deles sejam bastante densos (como os do já citado Mariátegui e os de Caio Prado Júnior, Sérgio Bagu, Marcelo Segall, Milciades Pena, André Gunder Frank, Rui Mauro Marini, Emir Sader, Hugo Blanco, Adolfo Gilly, Luis Vitale e Carlos Nelson Coutinho, entre outros). Michael Löwy levou em conta também, decisivamente, a importância histórico-política de alguns documentos, como pronunciamentos de partidos, comunicados, declarações programáticas que tiveram influência significativa (do Partido Comunista Brasileiro, do Partido Comunista do Brasil, do MIR chileno, dos Tupamaros uruguaios, da Frente Sandinista nicaragüense, do PC mexicano, dos trotskistas bolivianos e mexicanos).

Não podemos deixar de assinalar o fato de que, apesar de manifestar explicitamente seus princípios e seus valores, repelindo qualquer ilusão de "neutralidade; Michael Löwy, historiador consciencioso, procura, prudentemente, manter abertos espaços nos quais possam vir a ser descobertos e resgatados elementos lúcidos nas teorias de representantes de tendências que ele considera equivocadas ou perversas.

Em especial, Löwy critica a doutrina stalinista que predominou dos anos 30 até o início dos anos 60, que, com sua concepção etapista (o processo revolucionário deveria inexoravelmente atravessar as etapas necessárias, devendo os sujeitos da revolução se adequarem ao programa compatível com cada etapa), ensejou procedimentos tipicamente "oportunistas" e alianças feitas sem qualquer princípio. No entanto, ele ressalva: "Mesmo durante essa época, existiram investigadores marxistas criativos, tanto dentro como fora das fileiras do movimento comunista oficial".

Complementando a abertura espiritual em face daqueles de quem diverge, Michael Löwy se permite também, eventualmente, assumir algum distanciamento crítico em relação às posições políticas de forças com as quais se solidariza e que no essencial procura apoiar. Em face da Revolução Cubana, por exemplo, ele sublinha sua importância, sua originalidade, seu vigor, protesta contra o bloqueio criminoso imposto a Cuba pelos Estados Unidos, porém ressalva suas limitações, escrevendo: "A principal limitação da experiência cubana, que se tornou evidente a partir do final dos anos 60, foi a estrutura autoritária do poder revolucionário, a ausência de pluralismo político, de liberdade de expressão e de formas de controle democrático da população sobre as instâncias políticas (salvo em nível local)".

Diversos outros aspectos muito positivos do livro poderiam ser destacados, como, por exemplo, a abordagem, na sua última parte, de expressões novas e até certo ponto surpreendentes da perspectiva da esquerda, tais como a Teologia da Libertação (Frei Betto, Enrique Dussel), o novo zapatismo mexicano e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (o MST). Infelizmente, um balanço mais amplo dos dados e das observações que o volume contém se alongaria muito e não caberia no espaço normal de uma resenha.

Limito-me, portanto, a formular uma avaliação sintética: pela inteligência do enfoque marxista, pela sólida introdução, pela organização e a riqueza do material, este é um trabalho que nenhum pesquisador sério interessado pelo tema poderá desconhecer.

Leandro Konder é filósofo, professor no Departamento de Educação da PUC/RJ