Estante

O homem restolhadoQuando se fala de um poeta que é militante de alguma causa, logo se pensa naqueles poemas também militantes, que têm muito de militância e nada ou quase nada de poesia. Versos que soam melhor como palavras de ordem.

Pois eis aqui uma exceção. Gaston Miron é um militante radical pela independência de Québec (ele não aceita a expressão "separação"), e também poeta que declama seus poemas em manifestações públicas, porém sem se enquadrar no rótulo acima. Nascido em 1928, numa pequena vila da província de Québec, no Canadá, Miron foi para Montreal em 1953 e tornou-se um dos maiores poetas de expressão em francês de todos os tempos. E também um "animador, agitador, onipresente na luta do povo de Québec pela afirmação de sua cultura", como diz Flávio Aguiar, seu amigo e tradutor.

Em outubro, saiu pela Editora Brasiliense, a versão brasileira do seu livro O Homem Restolhado, (L'Homme Rapaille), uma obra que só poderia ser traduzida por um intelectual que fosse grande conhecedor de Miron, do Canadá, da cultura e da causa independentista de Québec. Tudo na sua poesia tem nome próprio e Flávio Aguiar teve que recorrer, às vezes, a notas de rodapé para "explicar" referências a pessoas ou lugares que desconhecemos, o que normalmente tornaria a leitura desagradável, já que parece estranho precisar explicar a poesia, mas o que também não acontece aqui. As notas enriquecem o texto.

O Homem Restolhado não é um livro fácil, porque Miron não é um poeta fácil. Não se espere quem for lê-lo encontrar panfletos. Miron é lírico. Seu livro, ainda que impregnado da cultura e do sentimento québecois (como traduzir esse adjetivo pátrio? Quebequiano?), parece ser a busca de um perfil do feminino.

Repailler significa, em francês, colher o que já foi usado para reutilizá-lo. No Québec, esse verbo dava nome à atividade do camponês, que no outono cobria os campos de palha, para protegê-los da neve e depois recolhia essa palha para usá-la como alimento para o gado.

Melhor do que tentar falar novidades sobre esse autor desconhecido por aqui, mas muito lido na Europa e na América do Norte, é recorrer à apresentação de alguém afeiçoado à poesia e que o conhece bem. Por isso, peço licença ao tradutor, Flávio Aguiar, para me apropriar de suas palavras, fazê-las minhas e espalhá-las, ainda que não parabolicamente: "Miron dá uma amplitude épica a seus versos. É um poeta da e na história. Diz e diz em praça pública. Mas dramatiza: descreve sua própria palavra, se auto-ironiza, e recusa os passaportes fáceis para uma fuga ou dissolução no coletivo indistinto. O poeta não fala pelos demais: ele está sempre diante do conjunto, a lembrar a especificidade de sua palavra. Mas não recusa sua condição cidadã: sua palavra é sempre um convite ao diálogo e ao comparecimento do outro. O poeta também se estranha: que é afinal, e o que é, neste vasto mundo de mercadorias e miçangas do consumo, neste mundo de violência consentida, e a que chama de prisioneiro de uma 'abundância cativa', vivendo à beira do vulcão do esquecimento?"

Mouzar Benedito é jornalista.