Estante

O debate sobre a até aqui complexa relação entre democracia e socialismo não é novo. Rosa Luxemburgo, lá em 1918, já tratava do assunto, e criticava duramente os bolcheviques, Lenin à frente, pelo autoritarismo e dizia que aquele modelo não podia dar certo. A democracia, pensava ela, tem de abraçar os diferentes. Não pode garantir direitos apenas para os que pensam e agem segundo a cartilha dominante, sejam quem forem os dominantes.

E é esta a discussão posta por O Mundo Real – Socialismo na Era Pós-Neoliberal, que conta com ensaios de Tarso Genro, Giuseppe Cocco, Carlos María Cárcova e Juarez Guimarães. Tarso Genro pergunta se é possível combinar democracia e socialismo, e a indagação, nos dias de hoje, ganha maior intensidade, sobretudo porque o socialismo, enquanto proposta de sociedade, vive uma crise sem precedentes.

Desde que o Muro de Berlim foi ao chão e desde que a URSS se desintegrou, não há mais um paradigma concreto de sociedade socialista, salvo a cubana e, se quisermos ser tolerantes, a chinesa, com toda a sua complexidade. E foi aquela derrocada, decorrente das contradições internas do socialismo denominado real,que sacudiu o movimento socialista mundial.

Até ali, havia um modelo de revolução – e esse modelo estava fundado na ruptura, no assalto ao Palácio de Inverno – e um modelo de exercício de poder – e aqui a chamada ditadura do proletariado ocupava papel essencial. Houve os esforços eurocomunistas, sobretudo do PCI, tentando configurar um caminho democrático de conquista do socialismo, mas este deu com os burros n’água, por motivos que não analisaremos aqui.

Só depois do fim do campo socialista hegemonizado pela URSS, a esquerda descobriu Gramsci e sua perspectiva revolucionária ba seada na luta permanente pela conquista da hegemonia. Lenin e sua estrutura teórica de tomada do poder perderam força e Gramsci, com sua notável elaboração sobre a revolução no Ocidente, passou a oferecer um instrumental muito mais fecundo para a observação dos processos políticos que estamos experimentando no mundo.

Em Tarso Genro, como em Juarez Guimarães, encontramos não a idéia da instauração do socialismo pelo caminho da destruição do Estado, sua posterior reconstrução e, então, passar à construção do socialismo, mas sim a noção de que o socialismo, dada a atual correlação de forças, se insere “como movimento estrategicamente concebido como componente da revolução democrática, a partir da construção de uma sociedade conscientemente orientada”, como diz Genro.

Essa sociedade só poderá ser construída, ainda na leitura de Genro, com altos níveis educacionais, culturais, de inclusão social maciça, baseada numa correta distribuição de renda e na instituição, a partir da sociedade civil, de diversos níveis e mecanismos de controle sobre o Estado e sobre os agentes públicos.

Objetivo dessa revolução democrática, essa sociedade alargaria as possibilidades de “escolhas democráticas perante o futuro indeterminado” e abriria “espaços nos quais os socialistas lutam por seus ideais de emancipação e igualdade social”. Não há mais aquela visão sobre um futuro previsível, próprio de parte do pensamento socialista determinista do século 20.

Os homens fazem história, mas a fazem sob determinadas circunstâncias. É Marx. E, nas circunstâncias que lhes são dadas, as opções são variadas. Dependem da capacidade hegemônica que tenham desenvolvido para afirmar esta ou aquela opção. Futuro indeterminado. O socialismo é uma possibilidade, não uma certeza. Descarta-se assim uma espécie de determinismo histórico, a idéia da inevitabilidade da revolução socialista.

A questão do socialismo como integrada à revolução democrática, “cuja centralidade é a obstrução da barbárie e do apartheid social, é a efetivação dos direitos sociais da modernidade, é a democratização da formação da opinião e construção institucional do controle público do Estado, do poder local até o centro político do governo”, ainda de acordo com Genro.

Juarez Guimarães, com seu Revolução Democrática e Socialismo, avança bastante na tentativa de definir o que venha a ser a revolução democrática, cuja meta seria a criação de um Estado com fundamentos democráticos diversos daqueles do paradigma neoliberal. Seria um processo de refundação institucional, com novos princípios de fundação de direitos e deveres, novas instituições e novas formas de regulação.

Guimarães empresta uma importância fundamental, na revolução democrática, à incorporação de valores, direitos e perspectivas do feminismo. Trazer o feminismo para uma posição hegemônica na formação de um novo Estado é caminhar no sentido da superação “das dimensões patriarcais presentes na tradição liberal”.

Aponta várias dimensões da revolução democrática, entre as quais a da nova gramática entre reforma e revolução, recuperando-se o conceito de reformismo revolucionário, a não-violência como valor, a ênfase posta na mudança da cultura política, a dinâmica da socialização do poder, e sua natureza internacionalista, combinando universalismo e interdependência. Tudo isso vinculado à idéia básica do socialismo democrático.

Trata-se de pensar o socialismo não como mera negação do capitalismo, “mas como sua superação a partir de seus elementos históricos progressivos”. A revolução democrática encerra a disputa e a superação crítica do liberalismo como visão que legitima e estrutura a sociedade capitalista.

Genro e Guimarães pensam a partir de uma mesma matriz – diria que, grosso modo, estariam lastreados no pensamento gramsciano, embora não apenas. O ensaio de Giuseppe Cocco já não segue essa tradição, o que torna o livro instigante pelo que suscita de discussão no seu próprio interior.

O Muro de Berlim, em Cocco, não era apenas uma separação. Ele mantinha as dinâmicas sociopolíticas das economias avançadas e do socialismo real como as duas faces de uma mesma e única moeda, “de uma mesma e única linha hegemônica de um ‘progresso’ em cujo cerne se encontrava o processo de industrialização”.

A queda do Muro teria significado o desmoronamento de um conjunto de visões de mundo, e não a afirmação linear da hegemonia de um dos modelos – o dos EUA. A queda do Muro, em Cocco, foi determinada por transformações sociais e econômicas oriundas das lutas revolucionárias de 1968. A partir daqui, ocorre uma dupla e irreversível crise da relação salarial, com o esgotamento do regime de acumulação taylorista e o desequilíbrio estrutural do sistema do Estado de Bem-Estar.

É a subordinação da sociedade como um todo à ordem fabril que desmorona. O trabalho fragmentado do neoliberalismo visa “de fato a governar o que, na outra ponta, constitui-se como atividade livre, de singularidades que se tornam produtivas independentemente da relação do capital”. É o trabalho da multidão. Nesse contexto, distribuir renda independentemente da relação de emprego significa fazer política em seu mais alto nível.

E Cocco propõe, mais do que o socialismo em seu sentido clássico, a radicalização democrática. Aqui, quem sabe, encontram-se as visões da dupla Genro-Guimarães com Giuseppe Cocco. A revolução democrática os uniria. Está aberto o debate sobre o mundo real. É a humanidade, jogada na luta política, que vai decidir o presente e o futuro desse mundo. O socialismo continua uma possibilidade.

Emiliano José é jornalista, autor de Carlos Marighella, o Inimigo Número Um da Ditadura Militar; Galeria F – Lembranças do Mar Cinzento, partes I e II; entre outros.