Estante

O PasquimO Pasquim foi um semanário da intelectualidade boêmia de Ipanema. Surgiu como um jornal de bairro. É certo que nem todos os seus jornalistas eram cariocas. Alguns vinham de Minas Gerais, outros do Sul e do Nordeste, mas na confluência de trajetórias distintas constituíram um jornal a partir das referências daquele microcosmo, a zona sul carioca, lugar no qual a maioria residia e com o qual se identificava. Ele desenvolveu uma forma de oposição à ditadura, influenciando outros periódicos. Foi um jornal que buscou na oposição político-cultural a liberdade de expressão. Estava voltado principalmente, mas não só, para a crítica da moral e dos costumes da classe média, ambiente do qual era originária essa intelectualidade. Nesse sentido, os pasquinianos puseram em xeque a própria formação, seus valores, sua cultura.

O Pasquim trouxe às bancas, em 26 de junho de 1969, uma pluralidade de opiniões. Correlacionou temperamentos, formações, gerações, valores e hábitos distintos. Em comum havia o desejo de se expressar livremente, sem  mecanismos de cerceamento. A vontade de falar acabou produzindo um discurso insuflado com a pessoalidade de cada cronista, cartunista, chargista, escritor e jornalista, que usavam o humor como narrativa. Era anárquico e sem pauta definida, mas não deixava de estar nas bancas semanalmente. A reunião de uma gama diversificada de intelectuais, no mesmo espaço redacional, provocou um conflito de egos, gerando muitas rusgas e dissidências, até mesmo cisões.

O principal efeito desse ambiente plural e visceral foi a produção de uma fala tipicamente pasquiniana e de uma geração que influenciou a sociedade em vários matizes. Comportamento, linguagem, estética e coloquialismo foram os pontos-chave para essa penetração, para a inovação jornalística que O Pasquim promoveu. Essas especificidades nortearam o periódico e seus colaboradores durante a década de 1970, seu período áureo, marcado por sua oposição ao status quo, ou seja, pela oposição às diversas formas de repressão impostas pela ditadura militar. Mas não podemos nos esquecer que o jornal esteve nas bancas até 1991, assim, atravessou todo o período de redemocratização do país.

O Pasquim se lançou na experiência alternativa1 dando voz a muitos jornalistas, artistas e intelectuais excluídos dos grandes veículos de comunicação, principalmente por não concordarem com o apoio que tais meios deram à ditadura. Podemos dizer que, além do apoio ao golpe, houve uma colaboração efetiva da grande imprensa para a manutenção e legitimação dos governos autoritários no pós-1964. Nas redações, eram feitas verdadeiras “limpezas”, expurgando os jornalistas que não se submetiam às novas diretrizes de “controle da qualidade” dos jornais: a censura interna. Assim, “recomendava-se” a não publicação do que estivesse proibido. Enfim, antes mesmo do crivo do censor, os donos dos jornais, redatores, editores e os próprios jornalistas se censuravam, seguindo as “recomendações” das instituições governamentais. Dessa maneira, o jornalista que não concordasse com tais ordens ou as desobedecesse era demitido. E era justamente no ambiente alternativo que muitos desses jornalistas expurgados da grande imprensa encontravam um espaço para o diálogo e para o debate.

N’O Pasquim, suas angústias, seus desacordos, seus questionamentos, suas opiniões eram expressos por meio da (auto)ironia, da sátira, do deboche, da zombaria, entre outras formas de fazer humor. Por falar em sua verve humorística, deve-se ressaltar que dois personagens essenciais do humorismo brasileiro influenciaram o semanário de Ipanema: Aparício Torelly, ou Barão de Itararé, e Sérgio Porto, ou Stanislaw Ponte Preta. O Pasquim fez do humor uma arma poderosa para marcar com criatividade e irreverência seu oposicionismo frente ao discurso político oficial. Principalmente através do uso de certas palavras e símbolos, proibidos pela moral da sociedade e da ditadura.

As páginas do jornal eram recheadas desse simbolismo narrativo, provocando uma intensa interação entre texto e imagem, os quais imprimiam a face do hebdomadário. Assim, destaca-se que os desenhos tinham a mesma importância dos textos, havia uma intertextualidade entre traço e escrita, como sugeriu José Luiz Braga2.

A organização desses diferentes intelectuais n’O Pasquim foi feita através da patota, uma idéia construída posteriormente, sobretudo, pelos leitores. A patota não era uma redação tradicional. O periódico era idiossincrático e não possuía uma pauta definida. Cada autor trazia uma contribuição inteiramente pessoal e independente, sem obedecer a nenhum plano. A patota interagia na diversidade, permitindo a existência de preferências, inclinações e estados de espírito diferentes. Formavam a patota: Jaguar, Tarso de Castro, Sérgio Cabral, Carlos Prósperi, Claudius, Millôr Fernandes, Ziraldo, Ivan Lessa, Henfil, Luiz Carlos Maciel, entre outros eventuais colaboradores.

Por tudo isso que a reedição em livro de algumas matérias, artigos, cartuns e fotografias dos primeiros 150 números do jornal trouxe para seus fiéis e antigos leitores, para os novos também, a oportunidade de uma “rememoração” das célebres entrevistas pasquinianas, como a de Leila Diniz, que fez história ao publicar os palavrões mencionados pela artista ou, então, em criar um novo simbolismo ao substituir alguns desses cognatos por asteriscos, os quais deram uma nova roupagem às palavras, que podiam ser (re)interpretadas conforme a opção de cada leitor. Os vários artigos que questionavam a ditadura, a classe média e a própria noção de imprensa alternativa, como o “Independência, é? Vocês me matam de rir”, de Millôr Fernandes. Além disso, podemos reviver as façanhas dos principais personagens do hebdô, como o rato Sig, de Jaguar e Lessa, os Zeróis, de Ziraldo, e muitos outros.

Ao final do livro, o público poderá se deleitar mais uma vez com algumas capas do jornal, lembrando que semanalmente existia certa expectativa para saber o que estaria estampado em sua primeira página. Merecem especial destaque as que denunciaram o “surto de gripe” que se abateu sobre o semanário. Era uma referência à detenção dos pasquinianos durante dois meses na Vila Militar no Rio de Janeiro. Durante o período de prisão, muitas matérias foram produzidas por seus colaboradores que integraram o “rush da solidariedade” e assinadas por Sig, a fim de não comprometê-los. Além disso, essa reedição trouxe o famoso quadro de Pedro Américo com D. Pedro bradando “Eu quero mocotó”, que ficou caracterizado como o “verdadeiro” motivo que teria levado os pasquinianos à prisão.

Seja como for, é sempre uma celebração rememorar as velhas páginas do hebdomadário, e na ânsia pelos outros volumes que serão publicados aguardamos para continuar contando essa história.

*Esta foi a primeira frase de capa d’O Pasquim. Essas frases funcionavam como editorais, uma vez que anunciavam para o leitor o espírito da edição daquela semana

Andréa Cristina de Barros Queiroz é historiadora e pesquisadora da Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. Mestre em História Social pela Universidade Federal Fluminense, defendendo a dissertação sobre O Pasquim ([email protected])