Estante

A Editora Expressão Popular recém-lançou o livro Militares e Política no Brasil (2018). A obra é composta por quatorze textos, divididos em quatro partes temáticas que tratam das relações dos militares com o Estado, a educação, a imprensa militar, o chauvinismo e o antifascismo. São quinze autores de distintas áreas profissionais e do conhecimento, sendo um filósofo, três cientistas sociais, oito historiadores, além de três militares de carreira, entre os quais um com formação em História e Ciências Sociais e o outro em Literatura.

Para aqueles que desejam compreender o passado e o presente das Forças Armadas do Brasil (FA), sua gênese histórica, suas articulações políticas, sociais e institucionais, bem como a sua problemática ideológica, a obra em questão é fundamental, trazendo pesquisas variadas que abordam a questão militar desde a formação das FA no século 19. Levando em consideração que na Nova República a tutela militar está prevista na Constituição Federal de 1988 e, além disso, o governo de Bolsonaro, no qual os militares formam praticamente a espinha dorsal do poder estatal, em uma espécie de “junta militar”, pode-se dizer que Militares e Política no Brasil é uma leitura imprescindível para o momento hodierno, a qual contribui para compreensão de como chegamos na situação descrita pelo prefaciador da obra, Daniel Aarão Reis, segundo o qual, durante a elaboração da Constituição de 1988 os militares “fizeram-se valer, através de lobbies e pressões diversas, garantindo [...] regalias próprias” e “a capacidade de intervir militarmente no jogo político para a ‘garantia da lei e da ordem’ (GLO). Finalmente, na conjuntura que vivemos nos dias atuais, voltam as Forças Armadas a planar, como sombras, sobre as instituições políticas” (p. 10-11).

Ainda no século 19, por meio de imprensa própria, os militares criaram em torno de si a imagem de “castidade moral”, de um lado, criticando as autoridades civis, políticos e bacharéis (p. 253, 282), de outro, ignorando a corrupção que grassava nos quartéis (p. 270).

Sendo o aparelho repressivo do Estado brasileiro, as FA não deixariam de herdar muitas das contradições que marcam a ossatura superestrutural do poder burguês. Nesse sentido, disputas marcaram a caserna durante o século 20, com forte polarização ideológica. Com a proclamação da República, emergiu a luta política entre várias facções militares, de modo que a hierarquia e a disciplina chegaram a ser questionadas por jovens praças e oficiais, os quais confrontaram o comando pelo direito de se manifestar politicamente (p. 23). Além da polarização esquerda/direita, as FA mostram-se fendidas pela divisão da sociedade de classes.

Nesse sentido, a classe dominante fez-se presente ocupando os cargos de alta patente. Sustentava-se no trinômio “hierarquia-disciplina-anticomunismo” (p. 24), o qual bloqueou a possibilidade de diálogo democrático entre os militares e levou a intervenções diretas na vida política nacional, como os golpes de Estado que marcam a época republicana. Representando o proletariado, os praças e sargentos tinham suas demandas ignoradas e podiam ser dispensados sem nenhum direito (p. 27). Nos anos 60, reemerge com força o movimento de sargentos, seguido pelo dos marinheiros, logo acusados pelos setores conservadores de suposta quebra da hierarquia militar (p. 39). Com o golpe de 1964, seguiu-se um grande expurgo nas FA, com um total de 6.591 militares perseguidos (p. 42).

O processo tardio de industrialização brasileira demandou forte indução estatal, que veio na forma tanto de apoios institucionais quanto de uma forte sustentação ideológica, sendo que as FA se fizeram presentes em ambos os aspectos (p. 67). Segundo a “consciência industrialista” (p. 68) dos militares, uma nação só poderia ter tropas bem aparelhadas se contasse com uma economia baseada em amplo parque industrial. Essa premissa não deixa de ser verdadeira, mas trouxe em seu interior novas contradições.

Nesse sentido, nos anos 1930, o general Góes Monteiro desenvolvera um conjunto de ideias para o Exército, formando uma doutrina de inspiração autoritária que transbordava para a nação: “O fortalecimento do Estado e da economia, como forma de garantir a unidade e a independência da nação, e a crítica ao liberalismo e ao comunismo (implícita ou explícita) eram preceitos comuns encontráveis nos pensadores autoritários da época, como Azevedo Amaral, Francisco Campos e Oliveira Vianna” (p. 73). Nessa época, os militares já tinham uma forte coesão, que lhes permitia intervir na sociedade. Isso, aliado à vulnerabilidade de Vargas, conferiu uma proeminência aos militares durante o Estado Novo, sendo que foram eles que garantiram o sucesso do golpe e a instauração do regime, em 1937, bem como sua derrubada, em 1945.

Entre 1930 e 1945, foram assistidas diversas revoltas militares, seguidas de expurgos que contribuíram para a coesão pretoriana e conferiram às FA a estrutura de reserva de poder burguês. Aprofundando essa relação, os militares estabeleceram conexões com o empresariado, sobretudo nos cursos ofertados pela Escola Superior de Guerra (ESG). A participação de empresários como conferencistas era comum, denotando “alto grau de congruência ideológica” com os militares (p. 93).

A ESG foi criada em 1949, nos moldes do National War College norte-americano, criado pouco antes, em 1946. Mas sua relação com as forças armadas dos Estados Unidos ia muito além disso. A ESG adotou a doutrina militar do Pentágono, abrindo mão de estudar por conta própria as grandes questões estratégicas, os problemas da guerra e da paz no mundo (p. 129). Ademais, a doutrina da ESG substituiu a “defesa nacional”, considerada então “obsoleta” pela “segurança nacional, isto é, a ‘defesa’ interna da ordem política e social” (p. 130). A obsessão pela “defesa interna” e “segurança nacional” já fez o país naufragar na obscuridade, entre 1964 e 1985. Será que poderemos, uma vez mais, assistir a tal decadência da nação?

A seção da obra dedicada à educação militar e à formação dos oficiais tem um caráter não apenas analítico, que é a proposta geral do compêndio, mas traz os relatos de três militares de carreira que foram testemunhas oculares da errática trajetória das FA no século 20: Bolivar Marinho Soares de Meirelles (general de brigada), Ivan Cavalcanti Proença (coronel de cavalaria) e Sued Castro Lima (coronel aviador).
As informações trazidas a lume por esses três oficiais são provavelmente a parte mais impactante da obra. Nesse fragmento percebe-se certo otimismo com a possibilidade de uma futura renovação da formação nas FA, e a transformação da nação, com o advento de uma democracia popular e de um exército popular (p. 186). Mas, ao mesmo tempo, revelam-se os mais obscuros interstícios da caserna.

A formação e a educação militar teve uma época na qual os cursos eram marcados pelo pluralismo, sendo que os aspirantes e oficiais tinham contato com diferentes visões de mundo e ideologias. Mas isso durou um breve intervalo de tempo, entre os anos 20 e 30 do século passado. A vitória do golpe de 1964 determinou a ascensão do segmento conservador e entreguista, o qual se tornou e se mantém como força hegemônica na caserna, em detrimento das frações nacionalistas (p. 206). No período pré-golpe de 1964, “o controle dos estabelecimentos [militares] de ensino revelara-se importante instrumento para disseminar o ideário de direita” (p. 208-9). O presidente João Goulart cometera um grave erro ao asilar nas escolas oficiais que não tinham sua confiança, presumindo que as academias representassem muito pouco na formação do militar. Após o golpe, a ditadura impôs uma rigorosa fiscalização sobre o comportamento dos cadetes, reprimindo qualquer debate sobre questões políticas e sociais (p. 209). O ensino que passou a ser disseminado a partir de então era altamente ideologizado, sendo que os palestrantes da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme) eram oficiais expoentes da extrema-direita. Somando-se a isso, é mínima a fração do ensino voltado às Ciências Humanas, as quais poderiam desalienar os alunos (p. 211).

Após 1985, a democratização não chegou à formação dos militares, fazendo das escolas de formação do oficialato bastiões do autoritarismo e do fascismo. Observa-se nas FA uma “sólida uniformidade do pensamento político conservador” (p. 212), evidenciando-se a permanência de cultura antidemocrática nas tropas (p. 214).

É importante salientar que apesar de os comunistas (civis e militares) historicamente se posicionarem no campo patriótico, defendendo a posse nacional das reservas minerais, essa concepção é em parte compartilhada com a direita militar, a qual insere-se tanto entre as forças nacionalistas como no seu avesso, entre os entreguistas. Nesse sentido, há uma direita militar entreguista e outra nacionalista (p. 167), de forma que o campo patriótico tem uma forte divisão interna. A leitura da obra em questão nos sugere que os militares patrióticos e de esquerda, na sua busca por coerência política, deveriam trilhar o caminho traçado pelo maior quadro intelectual das FA: Nelson Werneck Sodré (1911-1999), o qual reconheceu no povo trabalhador a maior riqueza da nação brasileira.

Rodrigo Jurucê Mattos Gonçalves é doutor em História, professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Goiás (PPGHIS/UEG), nível mestrado, com área de concentração em Cultura e Sociedade. Autor do livro História Fetichista: o Aparelho de Hegemonia Filosófico Instituto Brasileiro de Filosofia / Convivium (1964-1985). Anápolis: UEG, 2017. Baixe gratuitamente o ebook, clique aqui. Organizou com Marcos Vinicius Ribeiro e Guilherme Ignácio Franco de Andrade o livro Tempos Conservadores: Estudos Críticos Sobre as Direitas. Volume 2: Direitas no Cone Sul. Goiânia: Edições Gárgula, 2018]. Baixe gratuitamente o ebook, clique aqui.