Estante

O Roubo da falaVoltar a um tema como o trabalhismo no Brasil e, ao mesmo tempo, abordá-lo com originalidade e rigor científico não é, decididamente, tarefa das mais fáceis. Não só pela vasta bibliografia existente a respeito, como pelos ares pouco favoráveis às análises que retomam a categoria luta de classes, tão relegada a um plano secundário na universidade e no próprio debate político. Em O Roubo da Fala, Adalberto Paranhos enfrenta o estudo da relação entre Estado, trabalhadores e ideologia à época do Estado Novo, principalmente no período entre 1942/1943, com a fundamentação de pesquisa necessária aos que ousam inovar sobre um objeto já trabalhado por tantos outros estudiosos.

O livro discute o trabalhismo como um processo histórico em que a dominação de classes se deu a partir de um “abafamento” e de um “roubo” da fala operária, no sentido de destituí-la do seu potencial reivindicatório, tornando-a aceitável ao empresariado de então e ao seu aparato político. Se a repressão do Estado varguista visava quebrar a capacidade de resistência que os trabalhadores demonstravam nas suas reivindicações por melhores condições de vida e de trabalho, foi no campo da ideologia que se logrou um patamar superior de dominação. E, nesse aspecto, Paranhos explicita uma diferença com boa parte dos estudos a respeito: O Estado, à sua moda, procuraria apropriar-se da palavra operária, reelaborando-a, tanto quanto possível, ao sabor dos interesses dominantes. O que importa destacar, neste caso, ao contrário do que fazem as interpretações mais simplistas sobre os processos de dominação ideológica, é justamente a influência exercida pelas ideologias dominadas na produção das ideologias dominantes e/ou oficiais. As marcas impressas pelas lutas operárias se tornam bem perceptíveis. (p. 21).

A função invariável do Estado capitalista – amortecer o impacto das lutas de classes, mantendo-as dentro dos limites da ordem – foi realizada durante o trabalhismo pela apropriação de várias bandeiras de lutas dos trabalhadores e pela restituição delas na forma da legislação trabalhista e previdenciária, visando, assim, a incorporação subordinada dos trabalhadores às estruturas de poder e ao padrão de acumulação capitalista do período.

A novidade na análise do autor está no seu reconhecimento do papel que a própria voz dos trabalhadores desempenhou nesse processo, na exata medida em que ela pôs em xeque a ideologia liberal do não-intervencionismo estatal. Ou seja, de acordo com Paranhos, não se pode falar em “subordinação completa dos sindicatos à orientação governamental” (posição de Maria Hermínia Tavares de Almeida), em “uniformidade de pensamento e orientação [de] todas as formas de manifestações em todos os níveis” (tese de Nelson Jahr Garcia) e nem mesmo no Estado varguista como poder político capaz de “bloquear a emissão de qualquer outro discurso concorrente” (tal como sustenta Ângela de Castro Gomes). O Estado, mesmo o varguista, não é um demiurgo, um aparato todo poderoso que constrói uma realidade fora da luta de classes. Na verdade, esta é a dinâmica social fundamental, da qual o próprio Estado é resultado.

O livro está estruturado em cinco capítulos. No primeiro, discute-se a ideologia de Estado e a sua relação com a ideologia do trabalhismo. A análise cuidadosa das intervenções de dois dos principais ideólogos do Estado Novo é o recurso principal para tanto: Francisco Campos (ministro da Justiça do Estado Novo e praticamente o autor da Constituição de 1937) e Azevedo Amaral (jornalista, autor de livros em que se mostrou fiel defensor do regime) têm denunciadas as suas contribuições na construção do mito Getúlio Vargas.

No segundo capítulo é analisada a vida política e social daquele momento e a sua relação com o trabalhismo. Refutando toda e qualquer formulação que naturalize a história, Paranhos vai mostrando como foi sendo construída a “materialidade da ideologia”, revelando, portanto, a contemporaneidade do revolucionário italiano, Antonio Gramsci, para a compreensão das formas de dominação em que a força é o recurso último do Estado, protegida por várias trincheiras vinculadas à disputa pela hegemonia.

A preocupação central do capitulo 3 é mostrar que, diferentemente do que muitos outros autores dizem, os Estados autoritários têm um potencial mobilizador, especialmente no caso do trabalhismo. Claro que se trata de uma mobilização em torno da ideologia oficial. Parece-me bastante rica esta discussão, precisamente na medida em que se contrapõe a uma distinção clássica entre regimes totalitários (mobilizadores por excelência) e autoritários (estimuladores da apatia política das massas).

O capítulo 4 apresenta uma sistematização das idéias centrais do trabalhismo: o mito da outorga, o elogio do intervencionismo do Estado autoritário, a política da conciliação entre as classes e o culto ao Estado-Providência. As palestras e outras manifestações do ministro do Trabalho, Marcondes Filho, transmitidas pelo rádio no programa “Hora do Brasil”, constituem o rico material sobre o qual o autor se debruçou com o objetivo de identificar, no próprio discurso trabalhista, os eixos fundamentais dessa verdadeira visão de mundo.

Reportando-se ao momento de crise política por que passou o regime em 1943, O Roubo da Fala apresenta no último capítulo (5) como o trabalhismo buscou formar uma espécie de “reserva de mobilização” capaz de ainda defender o “homem providencial”. As restrições impostas pela II Guerra propiciaram condições favoráveis a um fechamento do regime, sempre voltado ao controle social sobre a classe trabalhadora e suas possibilidades de mobilização. O apelo à sindicalização massiva dos trabalhadores, obviamente junto aos sindicatos oficiais, foi um recurso estratégico nessa direção.

O discurso autoritário do Estado trabalhista fez eco mesmo entre alguns intelectuais que o analisaram. Em O Roubo da Fala tem-se uma boa oportunidade de revisitar e revisar algumas das teses sobre o assunto, principalmente porque o livro permite colocar a relação entre Estado e luta de classes no trabalhismo de cabeça para cima, sempre com um texto primoroso e de leitura agradável.

Edilson José Graciolli é professor de Sociologia na Universidade Federal de Uberlândia – UFU