Estante

Para que serve a história? Se um dos traços distintivos da modernidade é precisamente uma espécie de inquietação renovadora, marcada pela autoconsumação, por que então nos debruçarmos sobre ela? O esforço evidentemente só faz sentido se dele pudermos retirar elementos para refletir sobre o futuro da civilização. E isto porque a modernidade prometeu ao homem. por intermédio desse compulsivo processo de renovação, autonomia, libertação, auto-realização. Não nos deu ainda todos esses presentes, mas ninguém que ainda acredita nessa possibilidade pode prescindir das lições da história.

A revolução de outubro de 1917 e a emergência e posterior desenvolvimento do sistema soviético constituíram fatos singulares, de inegável importância na conformação dos rumos assumidos pela civilização em nosso século. Como interpretá-los, porém?

Fernando Haddad passa a limpo, de forma exaustiva, a quase interminável polêmica que esses eventos suscitaram. Esse o primeiro mérito de seu trabalho. Mas ele não pára por aí. Seu intuito não é simplesmente relatar a discussão, distinguindo posições e elencando autores relevantes. Busca, ousadamente, a partir da síntese desse debate, sugerir uma hipótese alternativa para a interpretação desses fatos. Esse o segundo mérito.

Hoje, no começo dos anos 90, depois da queda do "socialismo real", nada mais importante, principalmente para os que acham que "o sonho ainda não acabou", do que repensar esses momentos da história do século XX. Haddad não se furta a essa tarefa. Sua estratégia é rever as várias posições, fazendo uso rigoroso das categorias produzidas por Marx, seja para sua análise da história, seja para teorizar sobre o próprio capitalismo. O leitor encontrará amiúde os termos "modo de produção”, "acumulação primitiva", "forças produtivas", "relações de produção" etc. Isto não se deve, entretanto, apenas ao fato de ter sido este trabalho originariamente uma dissertação de mestrado. A razão principal para que o repensar se faça por meio dessas categorias é que a influência das idéias marxistas sobre o advento da revolução de outubro de 17 provocou, segundo o autor, uma série de interpretações equivocadas sobre sua natureza e seu papel. A mais importante delas, seguramente, é que tal revolução teria gerado, na Rússia, o modo socialista de produção. E Haddad tenta, pois, fazendo uso do mesmo arcabouço teórico, mostrar as falhas de todas elas, apresentando ao leitor, posteriormente, a sua própria (e desafiadora) hipótese.

Para ele, a revolução que levou os bolcheviques ao poder não foi uma revolução comunista (vale dizer, uma revolução a partir da qual estivessem postas as condições para a construção do socialismo), mas apenas uma manifestação antiimperialista. Tampouco constituiu um modo de produção, determinando o sistema que emergiu na Rússia a partir de então (e que estendeu-se depois para todo o Leste Europeu). Tratou-se, simplesmente, de um estágio de acumulação primitiva de capital cuja emergência é típica do processo de transição do modo de produção asiático para o modo capitalista de produção. (O modo de produção asiático caracteriza-se, grosso modo, pela existência de um Estado centralizador que submete a sociedade a seus interesses, seja em função de dificuldades impostas pela natureza, seja por conta do perigo sempre presente de invasões externas.)

Num texto fluido e agradável, a despeito da aridez do tema, o autor procura mostrar que o que surgiu da "revolução socialista" não foi o socialismo (como certamente acreditou Lenin e depois queria Stalin), nem foi o socialismo sob a forma de um Estado operário que teria depois se degenerado (como imaginaram Trotski e Mandel, entre outros). Não foi nem mesmo um embrião de socialismo. Para a validade de qualquer dessas interpretações seria necessário considerar a Rússia pós-revolução como uma sociedade sem classes, hipótese que o autor não aceita.

A sociedade soviética é, para Haddad, uma sociedade dividida em classes e, enquanto tal, poderia ser pensada ou como uma espécie de "capitalismo de Estado" (Bettelheim é o principal autor dessa vertente) ou como uma nova sociedade de classes, onde burocracia e tecnocracia teriam papéis de destaque (temos aí Lefort, Castoriadis, Marcuse e Galbraith, entre outros). O autor rejeita a primeira hipótese, fundamentalmente porque, para ele, o processo de acumulação soviético operou segundo uma via não-capitalista, e a segunda, porque, segundo sua visão, não há elementos suficientes para concluir que o sistema soviético constitui de fato um novo modo de produção. Em suma (e em sua conclusão ele se inspira em Bahro e Wittfogel) o sistema que emerge na Rússia após a revolução de 1917 é o próprio modo de produção asiático, só que numa fase de transição, onde opera a lógica da acumulação de capital; as condições que a garantem, contudo, não são postas e repostas pelo próprio capital, mas mantidas coercitivamente.

Fernando Haddad procurou responder algumas perguntas e foi até as últimas consequências. Seus resultados são, é o mínimo que se pode dizer, instigantes. Se ele estiver correto, são efetivamente alentadores (afinal, o que desmoronou junto com o muro de Berlim não terá sido, nesse caso, o socialismo, nem qualquer coisa parecida com ele). Por isso, para nós, que não desistimos de lutar, será certamente de grande valia percorrer com ele esse caminho.

Leda Maria Paulani é doutora em economia e professora do Departamento de Economia da FEA/USP.