Estante

Os Errantes do Novo SéculoUm dos raros clássicos sobre a cultura caipira, este livro de sociologia da religião propõe um novo olhar sobre a insurreição do Contestado. Esta, mais crucial que a Guerra de Canudos, envolveu vários estados da Federação e durou quatro anos (1912-1916).

Foi no início dos anos 1960 que o autor se dedicou à pesquisa de campo no norte do Paraná, com vistas a um trabalho sobre as relações sociais no universo rústico. No entanto, o que resultou dessa investigação não foi a tese, que ainda levaria uma década para ficar pronta, mas uma inesperada peça de teatro, Água de MemóriaÁgua da Memória, Rio de Janeiro: Letras e Artes, 1965., que ganhou o prêmio do Serviço Nacional de Teatro em 1965. A tese, como veremos, endereçou-se a outra, embora aparentada, matéria.

Água de Memória passa-se naquele mesmo território, num presente indefinido, mas preserva unidade de tempo, de espaço e de ação, concentrando-se em algumas horas nas quais os conflitos eclodem. As personagens são posseiros ameaçados de expulsão por uma imobiliária, a qual, comprando juízes, militares e civis, vai demonstrando seus direitos com títulos de propriedade evidentemente falsificados, coisa de que os posseiros, por sua própria natureza, não dispõem. (A história soa familiar: teria sido lida no jornal de hoje?)

A nova força econômica na região, o café, veio liquidar a economia de subsistência; acompanha-a o pentecostalismo, fazendo adeptos na circunvizinhança. Mas chegou também uma ponte, a qual leva o café e em troca traz as tropas que vêm expulsar os posseiros, conjuntamente com coisas que todos desejam, como o relógio, a bicicleta, a lanterna, o salário.

Perto de dez anos depois, Duglas Teixeira Monteiro apresenta em 1973 a tese aguardada, Os Errantes do Novo SéculoOs Errantes do Novo Século, São Paulo: Duas Cidades, 1974.: outro prêmio, desta vez o Governador do Estado, o maior do país. O espaço é o mesmo da peça, mas o foco retrocedeu em busca de um momento inaugural, que Duglas encontraria na rebelião milenarista do Contestado. Esta constitui não propriamente uma origem – porque esta é dada pelo sistema de dominação precedente –, mas um ponto de ruptura. A conflagração irrompe quando se inicia a construção da ferrovia, atravessando as terras dos posseiros, aos quais expropria e expulsa, provocando uma insurreição duradoura, difícil de debelar.

Situada nos limites entre sociologia e antropologia, a tese traz a novidade de se valer de teologia, literatura e teoria do mito, desenhando uma interpretação que aderisse tanto quanto possível a uma visão dos próprios agentes, os vencidos. Assim, Duglas encontraria uma explicação para o monarquismo inerente a tais movimentos, por ser a única alternativa política formal que os insurretos conheciam. De utilização apenas simbólica, nesse sentido apontaria não para o passado, mas para a superação do presente rumo ao futuro. A partir do desencantamento do mundo, quando a ordem de dominação vigente falhou em protegê-los, condenando-os ao desenraizamento e à errância, cuidaram de reencantar o mundo através da religião, que os arrebatou para um messianismo milenarista. Erigiram a solidariedade em fator central, criaram “vilas santas”, rituais próprios e a postulação da festa permanente, pela qual reinvestiram as efemérides religiosas usuais com novos significados. A leitura de Carlos Magno e os Doze Pares de França, livro corrente no sertão brasileiro de então, passou a fazer parte da liturgia, em praça pública. Nele os revoltosos encontravam a igualdade idealizada que queriam pôr em prática. É claro que se depararam com a mais feroz repressão, a que contrapuseram a Guerra Santa, e foram totalmente dizimados.

O livro tornou-se um clássico, pela finura da análise, pela erudição, pela beleza da escrita e pelo alcance explicativo.

A abordagem que desenvolveu tinha afinidades com a de autores que à época estudavam fenômenos similares, como o Hobsbawm das rebeldias pré-políticas e o Ralph Della Cava do padre Cícero; a ambos Duglas conheceu pessoalmente e estendeu sua amizade. Com o primeiro encontrou-se no congresso de História da Unicamp, em 1973, entendendo-se com ele para que recebesse um orientando seu, recém-mestre, para doutoramento na Inglaterra.

A propósito, Hobsbawm teve um gesto digno de registro em Campinas. Já tinha ocupado seu lugar no palco, quando Maria Isaura Pereira de Queiroz, que igualmente fazia parte da mesa-redonda da sessão, entrou no auditório. Levantou-se, caminhou até a escadinha de acesso, esperou que a colega a galgasse e, quando ela chegou a sua altura, beijou-lhe a mão. Inesquecível.

Do segundo tornou-se amigo quando organizou todo um setor da reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC, fórum maior da resistência intelectual à ditadura), em Recife, em 1974. Duglas, que foi, até a morte, um militante da agremiação, incumbiu-me de compor uma mesa-redonda sobre o mundo rústico. Atenderam a meu convite: José Calasans, da Universidade Federal da Bahia, que deu notícia de outros conselheiros afora o de Canudos; Richard Morse, à época presidindo a Fundação Ford, com sede no Rio, que explicou a diferença entre plantation e farm; e Ralph Della Cava, vindo especialmente dos Estados Unidos, que falou sobre as consequências da penetração do capitalismo no campo. Caio Prado Jr., que acabara de sair da prisão, completava a mesa, mas à última hora não pôde comparecer. Essa foi a SBPC que, pioneiramente, divulgou uma declaração de princípios em favor da liberdade de pensamento e de expressão, confrontando a ditadura, em texto que só foi publicado localmente no Jornal do Comércio e censurado no restante do país.

Na produção subsequente de Duglas, sempre na linha da sociologia da religião, merecem destaque dois outros trabalhos. Um deles, “Um confronto entre Canudos, Juazeiro e Contestado”“Um confronto entre Canudos, Juazeiro e Contestado”, História da Civilização Brasileira, III – O Brasil Republicano, Vol. 2. São Paulo: Difel, 1978, 2ª ed., publicado na prestigiosa coleção dirigida por Sérgio Buarque de Holanda, estuda esses que, tão semelhantes e tão díspares uns dos outros, constituem os três principais surtos insurrecionais religiosos de nossa história. Outro é “Roger Bastide: religião e ideologia”“Roger Bastide: religião e ideologia”, Religião e Sociedade, Iser/CER, nº 3, outubro de 1978., que foi prefácio da edição norte-americana de As Religiões Africanas no Brasil, do mestre francês. A Duglas instigavam os fenômenos de sincretismo a que estão sujeitos os sistemas de culto, absorvendo, ao se expandir, elementos de outros.

Tanto ia ao estádio do Pacaembu assistir à pregação do evangelizador americano Billy Graham, quanto se levantava às cinco horas da manhã para ouvir os programas pentecostais de rádio. Deste madrugar resultaria uma de suas derradeiras publicações, “Cura por correspondência”“Cura por correspondência”, Religião e Sociedade, Iser/CER, nº 1, maio de 1977.. Inteirava-se assim de todas as manifestações de religião, sua área de trabalho, pela qual, embora fosse um salutar ateu, guardava um interesse particular no que diz respeito às metamorfoses contemporâneas.

Em boa hora a Edusp cuida de reeditar este trabalho indispensável, pesquisado e escrito logo antes do surgimento do MST, mas que, inclusive pela proximidade territorial e pelo conteúdo rebelde, ajuda a iluminar as questões agrárias.

Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da FFLCH-USP e integra o Conselho de Redação de Teoria e Debate