Estante

Guilherme Costa Delgado é doutor em Economia pela Unicamp (1984), pesquisador aposentado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), autor de vários livros e inúmeros artigos, possui uma trajetória reconhecida, seja pela densidade teórica de suas produções, aliada à capacidade de interpretação da realidade, como também, por seu engajamento, colaboração e luta em importantes causas sociais, junto às pastorais sociais da Igreja e nos movimentos sociais. Particularmente, ligados às lutas agrárias e defesa dos direitos sociais.

O livro apresenta uma síntese de trabalhos e de análises de conjuntura construídas em diferentes tempos históricos, ao longo de três décadas, tendo como pano de fundo a Constituição Federal de 1988. Para tanto, Delgado selecionou 115 pequenos artigos relacionados com o eixo temático do livro que encontram-se devidamente organizados em três partes e dez capítulos. Ao final de cada capítulo acrescentou uma breve síntese do tema.

Na apresentação do livro o autor esclarece que a escolha do título e das categorias centrais Terra, Trabalho e Dinheiro, que “constituem as bases da chamada economia de mercado”, se sustenta teoricamente na obra A Grande Transformação, de Karl Polanyi (1944), enquanto que regulação e desregulação estão concretamente relacionadas ao período de vigência da Constituição de 1988. Alerta, entretanto, que para o recorte histórico-geográfico escolhido impõe-se a necessidade de redefinir alguns conceitos.

A categoria Dinheiro, tratada como moeda (meio de troca interno e meio de pagamento externo, sob a égide do padrão ouro) por Polanyi, é ampliada por Delgado para abarcar o sentido mais amplo das finanças públicas, bem como as dimensões da regulação e apropriação financeira e conflitos distributivos; Trabalho abarca também a política social das relações de trabalho, de seguridade e de proteção social; enquanto Terra compreende os direitos fundiários à posse e propriedade, além da regulação política e mercantil.

Do ponto de vista do método é definido pelo próprio autor como “histórico-estrutural”, seguindo três critérios metodológicos: 1) enfoque factual na medida que seus artigos de análise de conjuntura fazem uma leitura da história do tempo presente e encontram-se cronologicamente organizados; 2) a escolha do fato conjuntural-estrutural seguindo o movimento estrutural histórico da economia, sociedade e política em cada tempo histórico; e 3) a existência de um fio condutor hermenêutico a partir das sínteses conclusivas no final de cada capítulo.

A primeira parte, constituída por quatro capítulos, aborda “Finanças Públicas: regulação e distribuição de renda na economia e sociedade pós-1988”. O autor destaca que “o campo das finanças públicas é por excelência o espaço político da luta de classes pela apropriação do excedente econômico, embora nunca apareça com essa linguagem na análise convencional”.

Destaca, também, a existência de uma nova moldura institucional do sistema fiscal-financeiro, instituída a partir do foco na estabilização monetária, do Plano Real (1994) e alerta para os crescentes desequilíbrios financeiros, em função da equação montada para atacar a inflação e buscar estabilidade monetária. Particularmente, o déficit nas transações correntes que torna o país cada vez mais dependente da entrada de capitais em vista do equilíbrio no Balanço de Pagamentos. Como consequências, ocorrem aumentos do endividamento externo e da dívida mobiliária federal (dívida interna), absorvendo fatias crescentes do orçamento fiscal, gerando disputas para assegurar o orçamento da Seguridade Social e demais direitos sociais introduzidos pela Constituição de 1988.

Alerta para mudanças financeiras que foram sendo adotadas, dentre as quais: a absorção pelo Tesouro dos esqueletos financeiros (passivos podres); a isenção à renda do capital (dividendos livres do Imposto de Renda); a imposição da Lei de Responsabilidade Fiscal; e já no cenário pós-Golpe de 2016, a PEC do Teto (241/2016, transformada na Emenda Constitucional 95/2016) que impõe “Novo Regime Fiscal” determinando o congelamento real do Orçamento Fiscal e da Seguridade Social para os próximos vinte anos. Em síntese, impõem-se a austeridade à prestação de bens e serviços públicos à sociedade, com “engessamento” da política fiscal, enquanto prevalece a frouxidão a um seleto grupo de devedores públicos de grandes fortunas, além do compromisso total e irrestrito com os pagamentos ao setor financeiro, ficando a Nação refém de ricos credores e sonegadores.

As crises financeiras em diferentes países, desde os anos 1990 e mais recentemente a brasileira de 2015/2017, também são foco da análise, a partir da observação de seus traços comuns: crise no balanço de pagamentos, ataque especulativo às moedas nacionais e a consequente e rápida fuga de capitais. Cuja consequência imediata é a retração do PIB, que para as pessoas comuns se traduz em menos empregos, diminuição dos salários e piora nas expectativas de desempenho econômico. Chama atenção a incapacidade dos principais organismos internacionais (FMI, Banco Mundial, OMC etc.) de prever a evolução da economia mundial e se antecipar às crises financeiras, além das dificuldades do establishment globalizado de gestar novas regras para organização do capitalismo mundial.

Ao longo dos textos, em vários momentos e particularmente nas crises, se vê aflorar o debate entre os chamados “desenvolvimentistas” e os conservadores “neoliberais”. A estratégia conservadora insistentemente aponta para a adoção da política de “déficit nominal zero”, indicando a “necessidade” de profundos cortes nos gastos correntes. Leia-se, “cortes nos salários e ordenados do serviço público e os benefícios monetários e não monetários da política social”, com os sistemas previdenciários, da assistência social e do seguro desemprego como principais focos.

Na contramão destas proposituras, o autor identifica dois graves riscos estruturais: a abertura integral e irrestrita ao capital financeiro externo e a especialização em commodities com base em uma estrutura agrária ultraconcentrada e com tendência a concentrar ainda mais em função da especialização plantation for export. Entende ele que as políticas conjunturais deveriam sinalizar para mudanças de rumos como forma de superar o ciclo vicioso, rompendo com a dependência externa e a estagnação econômica.

A segunda parte possui três capítulos e destina-se a “Política social, relações de trabalho e proteção social: tensão ideológica e conflito distributivo”. Considera que o Estado social que emerge da Constituição de 1988 tem na Previdência Social (RGPS) seu carro chefe, incorporando grande parte da população e contribuindo sobremaneira na distribuição de renda. A forte inclusão de trabalhadores na primeira década do século 21 pode ser explicada por dois fenômenos: o aumento do emprego formal e a longevidade crescente. Diante desse quadro, o autor chama a atenção para a necessidade de se repensar o financiamento da Previdência, apontando como alternativa uma Reforma Tributária progressiva que taxasse grandes fortunas e retirasse dinheiro dos mais ricos, com claros objetivos distributivistas. Ao contrário, os governos optaram por desonerar ainda mais o capital, comprometendo a continuidade do sistema.

Durante o período analisado o autor registra sucessivos ataques contra as regras constitucionais, ligadas à CLT e de proteção social, ligadas à Seguridade Social. Sendo que o período mais crítico ocorreu entre 2015-2017, em particular, pelas regressões da “novas relações de trabalho”, impostas pela Lei 13.467/2017, além da PEC 287/2016 (Reforma da Previdência), com mensagem implícita de expelir os trabalhadores pobres da Previdência.

Além de identificar o claro aumento do trabalho informal (não regulado pela CLT) em relação ao trabalho formal/protegido (pelas regras da CLT), o autor chama atenção para o conceito e o crescimento de um amplo “setor de subsistência” do mundo do trabalho, tanto no campo quanto na cidade. Tal setor “compreende o conjunto de atividades econômicas e relações de trabalho que propiciam meios de subsistência e/ou ocupação a uma parte expressiva da População Economicamente Ativa, mas tais relações não são reguladas pelo contrato monetário de trabalho, nem visam primordialmente a produção de mercadorias ou de serviços mercantis com fins lucrativos”. Se constituem em herança da economia colonial.

Na terceira parte e última trata da “Terra e direitos fundiários: tensão pela apropriação mercantil no período”. Ressalta a revolução do ponto de vista conceitual incorporadas pela Constituição de 1988 ao definir três regimes fundiários: a) terras destinadas à produção agropecuária subordinadas ao princípio da Função Social da Propriedade (Artigo 186); b) criação dos regimes de terras étnicas (indígenas Artigo 231 e quilombolas, ADCT, Artigo 8°); e o regime das unidades de conservação ambiental (Artigo 226).

Entretanto, o surgimento nos anos 2000 de um pacto de economia política entre a grande propriedade fundiária e o capital financeiro e com participação direta do Estado (autodenominado de agronegócio) vai mover a economia rumo à concentração da produção em commodities e a “primarização” do comércio externo, levando paulatinamente ao abandono das políticas agrárias e fundiárias federais em prol do regime fundiário da “terra-mercadoria”, que institui processos de “grilagem de terras públicas” e sua legalização, reforçando a “mercadorização total” das terras.

O modelo de produção em questão, pautado no velho princípio da Lei das Vantagens Comparativas naturais, avança no sentido da superexploração dos recursos naturais, provocando escassez hídrica, desmatamento e emissão de dióxido de carbono na atmosfera, coincidindo com processos planetários de mudanças climáticas. Tais processos relançam a necessidade de “revisita à economia ecológica e a economia do subdesenvolvimento” e outras iniciativas que apontem para uma mudança de paradigma.

Por fim, vale dizer que se trata de uma obra de suma importância e bastante necessária, particularmente pelo momento que vivemos, em que a frágil democracia brasileira, alicerçada na Constituição Federal de 1988, vem sofrendo sucessivos ataques aos mais elementares direitos constitucionais. Mais do que nunca, é preciso alimentar nossa capacidade de análise, para entender as verdadeiras causas dos problemas e buscar saídas em uma conjuntura tão adversa. E esta obra se coloca seguramente nesta perspectiva.

Rogério Antonio Mauro é economista, professor do Instituto Federal Goiano e doutorando em Geografia pela Universidade Federal de Goiás.