Estante

O livro Os Rumos da Perestroika, de Boris Yeltsin, lançado no início de março, é um documento imperdível. Um autêntico e sincero petardo disparado no "socialismo burocrático de caserna" ainda vigente na União Soviética, conforme a definição de Yeltsin, o deputado eleito em 26 de março de 1989 para o Congresso de Deputados do Povo por Moscou com quase 90% dos votos, numa memorável derrota do candidato do aparelho do PCUS.

Até recentemente membro do Partido Comunista, Yeltsin conta sua trajetória política e de vida desde que deixou seu posto de primeiro-secretário do PCUS em Sverdlovsk, na região dos montes Urais, para tornar-se primeiro-secretário do partido em Moscou, em 1985, e aspirante a membro da hierarquia máxima do PCUS, o Politburo. Eleição que não chegou a se consumar depois que Yeltsin "estragou" as comemorações do 70º aniversário da Revolução Russa com um discurso na plenária do Comitê Central (CC), crítico em relação ao ritmo lento da perestroika. A heresia de Yeltsin já havia se manifestado algumas semanas antes, quando em reunião do Politburo com os aspirantes criticou o informe preparado por Gorbatchev para a plenária do CC.

Como relata Yeltsin, suas relações com Gorbatchev esfriaram-se a partir dali, depois de ter colhido uma resposta irritada do secretário-geral, resvalando a histeria. O caldo entornou de vez na plenária do Comitê Central de outubro de 1987, e Yeltsin começou a ser expelido de todos os seus postos e colocado num verdadeiro moedor de carne político e moral.

Até chegar a esse ponto, Yeltsin narrou sua história pessoal e política, o que é fundamental para se compreender como um "rebelde" chegou a um dos mais altos postos do país. Ele divide sua carreira política em três fases: a primeira, que vai da entrada no partido, em 1970, até a plenária de outubro de 1987; a segunda, daí até março de 1989, quando ele trava uma terrível luta para não ser moído política e pessoalmente; e a terceira, depois de renascer nas eleições com o maciço voto dos moscovitas.

Movido por enorme força interior, disciplina e capacidade de trabalho, Yeltsin, engenheiro de profissão e jogador de vôlei por paixão, foi se projetando como competente diretor de fábrica e de unidades industriais, não sem antes ter passado, no primeiro ano posterior à sua saída da Universidade, por um completo aprendizado prático com os operários da construção civil de Sverdlovsk. Em vez de se enterrar em um gabinete, Yeltsin passou um ano inteiro aprendendo cada uma das funções executadas pelos operários da construção. Desde então ele só fez se aproximar ainda mais das terríveis condições de vida de enormes contingentes populares na região de Sverdlovsk (um microcosmo do país), onde precárias habitações coletivas de madeira, nas quais ele se criou penosamente, depois da 2ª Guerra, continuavam a abrigar milhares de famílias nas décadas de 50 e 60.

Yeltsin ocupou, durante dez anos, o posto de primeiro-secretário regional. Foi o período de ouro da gestão Brejnev, os "anos da estagnação", quando a burocracia entronizou seus privilégios como nunca. Em Moscou, os altos burocratas discursavam sobre as mazelas do capitalismo, mas disputavam o privilégio de enviar seus filhos para estudar nas universidades desses países, abasteciam-se avidamente nas lojas especiais e engalfinhavam-se pelos cargos com direito a limusines ZIL, para as quais não há sinais fechados nem limites de velocidade pelas ruas de Moscou. A corrupção e a máfia tomaram conta da capital. A cidade caminhou para uma situação de colapso nos transportes, abastecimento e habitação.

O país não podia continuar como estava quando se colocou a sucessão de 1985, depois da morte de Tchemenko, posto no cargo já enfermo, uma típica manobra da burocracia para ganhar tempo. Grishin, primeiro-secretário de Moscou, candidatou-se ao cargo de secretário-geral do PCUS como expressão do que havia de mais bajulatório e corrupto. Gorbatchev surgiu como o nome de renovação, abrindo-se, então, o processo de perestroika e glasnost.

Yeltsin foi trazido para Moscou para que fizesse a limpeza no partido da sujeira acumulada por Grishin. Ele, entretanto, ultrapassa a luta de aparelho. Debruça-se sobre os graves problemas da capital e aos poucos vai se tornando um profundo incômodo para o aparelho e sua expressão mais radical, Ligatchev, o ideólogo do partido.

Sacudir a burocracia, resolver os problemas práticos da vida na capital exige mais do que ação individual. Exige, na verdade, cofrontar-se com o coração da burocracia e do sistema fechado de poder. Gorbatchev, critica Yeltsin, tem como marca característica, no entanto, o compromisso. "O mal básico de Gorbatchev - o medo de dar passos decisivos e extremamente necessários - manifestou-se plenamente nesta área" - (a economia), diz Yeltsin. Longe de colocar suas diferenças com Gorbatchev sobre um plano de disputa pessoal, Yeltsin, na verdade, vai ao fundo dos problemas colocados pela perestroika. Com ela, diz Yeltsin, "deu-se um passo correto, embora, evidentemente, tenha sido uma revolução de cima para baixo. E esse tipo de revolução acaba fatalmente se voltando contra o aparelho, principalmente se ele não está em condições de conter a iniciativa popular em um curso aceitável. E esse aparelho começou a resistir à perestroika, a retardá-la, combatê-la, e ela começou a patinar".

Não é preciso falar do problemas da Lituânia, hoje, e de outras minorias nacionais, para entender as contradições da perestroika, que vive um momento delicado, o qual, com toda certeza, explodirá no 28º Congresso, marcado para 2 de julho próximo. E o futuro da perestroika, com todo o conteúdo de democratização que ela abriu para a União Soviética, é vital para todo o mundo. Até porque a renovação da sociedade soviética concentra uma das chaves do progresso de toda a humanidade, no rumo de um socialismo sem o terror de Estado montado por Stalin e sofisticado por seus sucessores. Quem quiser refletir sobre isso não pode deixar de ler Os Rumos da Perestroika de Boris Yeltsin. Ainda que o livro tenha uma lacuna - pelo fato de Yeltsin não expor em maior profundidade suas propostas para a URSS -, ele possibilita ao leitor entender os impasses que levaram à perestroika e o chama a acompanhar mais de perto o que se passa na URSS e no Leste Europeu.

Edmundo Machado de Oliveira é jornalista e membro da Comissão de Ética do DR/PT-SP.