Estante

Livro é súmula luminosa de inquietaçõesA começar pelo desconcerto do título, o livro escrito por José Maria Cançado sobre a vida de Carlos Drummond de Andrade não assegura ao leitor uma viagem previsível, despida de sobressaltos. É, antes, uma súmula luminosa de inquietações.

Nada mais drummondiano. Penso, ao revés do ângulo polêmico empobrecedor com que o livro foi acolhido pela maior parte dos seus resenhistas, que é este o grande mérito de Os Sapatos de Orfeu. A forma literária e a estrutura quase romanesca em que a biografia se contém - a sua "química impuríssima", poderíamos dizer - configuram talvez o único caminho possível para se reter esta experiência claramente enigmática que foi a vida de Drummond.

Seria impossível, por exemplo, biografar o poeta itabirano através de uma narrativa naturalista de suas idades, madrugada, manhã, tarde e noite de sua vida. O livro de Cançado registra que a infância e a adolescência do poeta foram pura descontinuidade e desfalecimento, que a sua individuação ao longo dos seus vinte anos deu-se no espaço intemporal da literatura e que, a partir daí, a vida do poeta foi povoada de eclipses e sóis noturnos até o fim.

Menos reveladora ainda seria a tentação de saturar o enigma drummondiano em uma massa de fatos, anotações de casos e circunstâncias. O fato decisivo da vida de Drummond foi a sua poesia, esta personalíssima chave para o subjetivo. Seria como perscrutar estrelas com microscópios.

Inútil também a tentativa de, através da poesia, revelar o poeta, perguntar à criatura os segredos do criador. Como definiu Otto Maria Carpeaux, em um ensaio de 1943 (Fragmento sobre Carlos Drummond de Andrade), a sua poesia "é reflexo duma grande angústia e índice duma tensão dramática, de um conflito não resolvido e que continua". Lugar nenhum de resolução, a poesia de Drummond está contaminada, nela estão inscritas "as impurezas do branco" que habitaram a vida do poeta.

Se é assim, se Os Sapatos de Orfeu é um quase-romance que, ao jeito drummondiano, mais solicita e inquieta do que apazigua ou responde, o que faz dele uma peça-chave para pensar hoje o problema da cultura no Brasil?

A resposta é: o personagem central do livro, que nele comparece em carne e osso, acolhido em seu território e não delimitado artificialmente de fora, é o personagem mais dramaticamente representativo da definição, marxismo é humanismo radical, Drummond é neste século o nosso maior humanista. Aquele que, como diz Cançado, "cantou quase tudo neste século e neste país, dando aos seus objetos uma qualidade e uma cifra que fizeram com que eles se incorporassem ao nosso "fatal lado esquerdo".

A maior virtude e, em certo sentido, o limite da obra poética de Drummond é a sua porosidade infinita, a sua transitividade ilimitada. O ser gauche na vida tem exatamente o significado de estar ali, entre os humanos, mas no canto improvável, a sensibilidade extremada e a razão desperta.

Do canto da província, vindo de uma oligarquia mineira decadente até o cosmopolitanismo do Rio de Janeiro desde os anos 30. O tomar partido no imenso choque de visões de mundo que, a partir de 30, moldou a cena política brasileira. O sentimento do mundo, acolhendo em sua poesia os grandes cataclismos do século, suas promessas e decepções. O lugar angular de Drummond entre os homens de cultura de sua geração que formaram a sensibilidade moderna brasileira.

E, sobretudo, a célula erótica desmesuradamente desenvolvida, esta capacidade incomensurável de amar vidas, corpos, destinos que é o núcleo duro, a cidadela inexpugnável do universo Drummond. Tudo isto está nesta biografia-romance tecida por Cançado.

O maior impasse da sociedade brasileira foi desde sempre o abismo entre o sopro emancipador da cultura e a projeção épica das suas esquerdas. Os Sapatos de Orfeu é um intenso registro da busca de comunicação entre estes dois planos que foi a vida e a obra de Drummond. Sigamos as pegadas deste Orfeu.

Juarez Guimarães é secretário municipal do Diretório Municipal de Belo Horizonte.