Estante

Osvaldo Aranha- Uma biografiaDiz Maquiavel sobre um personagem do Príncipe que para ele ser um governante perfeito só lhe faltava um reino para governar, ou algo parecido com isto. A frase se aplica perfeitamente a Osvaldo Aranha, um dos poucos estadistas de estofo e fato que o Brasil republicano já teve. Se no passado isto era coisa rara, hoje, então, quase nem pensar. É sem dúvida um prazer a leitura desta biografia do grande conspirador da Revolução de 30. Não necessariamente por concordância com o biografado nem com o biógrafo, mas muito mais por ver o homem de estado em ação - o homem público -, o homem de visão política aguda e que sabia como desenhar um projeto para o Brasil "estar no mundo" - não na marginália, como hoje.

Algumas atitudes e propostas do personagem são eloqüentes a respeito da justeza de sua visão, bem como a situação conjuntural do país naquela época era muito diversa da de hoje. O resultado da leitura é uma visão muito aguda do que o Brasil poderia ter sido, mesmo dentro de uma ótica conservadora, e não foi, graças à opção de nossas elites pela mediocridade contumaz.

No final dos anos 40, quando Aranha chefiava a representação do Brasil na Assembléia Geral da ONU, uma das questões centrais da diplomacia brasileira era determinar a política em relação à União Soviética. Os respectivos papéis na guerra abriram o caminho para o reatamento, mas a Guerra Fria punha sobre a mesa a alternativa dos alinhamentos exclusivos. Dutra, que durante o Estado Novo e a guerra, se alinhara ao lado de Felinto Müller e de Francisco Campos na ala pró-Eixo, contra a ala "liberal", chefiada por Aranha, era agora mais americanófilo do que os americanos. Isto, mais o temor do comunismo em nossa burguesia e adjacências, levou o país na direção do alinhamento exclusivo e, portanto, de novo rompimento com a União Soviética. A correspondência de Aranha, fartamente citada no livro, mostra sua decepção com este rumo. A seu ver, isto fechava ao Brasil por décadas a possibilidade de qualquer papel de liderança na diplomacia mundial, além de fechar-lhe as portas de ser membro definitivo do Conselho de Segurança da ONU. Ele estava certo.

Já no fim do segundo governo de Vargas, numa de suas cartas, Aranha comenta o que vê como rumos possíveis para o país. A esquerda, dizia ele (então o PC e o bloco em torno do Ministério do Trabalho), vai enveredar pela demagogia; a direita tentará uma candidatura com apelo de massas e depois o golpe. Em suma, era uma visão desiludida e absolutamente correta do que iria se passar.

O livro cita fartamente a correspondência da época, sobretudo, é claro, a do biografado. Nem por isto fica chato. É que a vida do personagem e a vida daqueles tempos não o era, definitivamente. Além das conspirações rocambolescas desfilam perante nós gestos do mais exaltado romantismo - como a proposta de Aranha, na madrugada de 24 de agosto de 1954, de que ele e Vargas ficassem no Palácio do Catete e resistissem até a morte contra o golpe que se armava. Vargas, como sempre, dentro de seu estilo, preferiu o caminho das sombras: despediu todos, inclusive Aranha, e matou-se por volta das 8:30 horas.

A fidelidade de Aranha a Vargas é das coisas mais curiosas e sensíveis a respeito deste personagem. Vargas conspirou o tempo inteiro para não permitir que a liderança liberal do amigo e correligionário o levasse, num caminho natural que era, à Presidência da República. Aranha era o candidato em 34, não Vargas. Aranha era o candidato em 50, não Vargas. E este conspirava e conspirava, dentro de sua vocação de permanecer no poder a qualquer custo. Aranha serviu aos sucessivos governos Vargas em todas as suas vicissitudes: foi ministro da Justiça, da Fazenda, depois de organizar a conquista e a ocupação do poder em 30 e sua manutenção em 32 e 34. Se não foi entusiasta do Estado Novo, com ele conviveu o suficiente para ter esta nódoa em sua biografia. Mas então encontrou sua vocação maior, a de diplomata. Talvez seu momento mais brilhante, além da conspiração de 30, tenha sido de fato sua passagem pela Embaixada Brasileira em Washington, quando afinal encontrou um estadista à sua altura com quem dialogar e se confrontar: Roosevelt. Serviu novamente à diplomacia por ocasião do governo Dutra e voltou ao governo no final da era Vargas. Foi cogitado como companheiro de chapa do candidato Marechal Lott (já o fora antes em relação a Jânio Quadros). Abriu mão, alegando que não podia mais ser segundo de ninguém, depois de ter sido segundo de Vargas durante vinte anos. Se tivesse aceito, quem sabe a história seria outra. Mas ele morreu pouco depois, não vendo o destino mesquinho em que os golpes de direita mergulharam o país.

A biografia de Hilton é fartamente documentada e de leitura agradável pela importância do personagem e de seus atos dentro da conjuntura em que viveu. É pouco interpretativa, no entanto. Escrita por um autor formado nos moldes da Guerra Fria, demonstra pouco espírito crítico e falta de distanciamento em relação ao personagem e sua perspectiva de aproximação com a política do Departamento de Estado americano. Também a convivência de Aranha com a política do Estado Novo mereceria um melhor escrutínio. Se o trabalho de Hilton carece de maior aprofundamento em termos de análise, é interessantíssimo como relato e como exibição de documentos pertinentes. Vale a pena. Livro e personagem têm bastante a dizer para os dias de hoje, em que a quota de homens públicos de espírito público neste país parece daquelas rações de guerra, de que ouvimos falar.

Flávio Aguiar é professor de Literatura e jornalista.