Estante

Para além do capitalCerta vez, Marx declarou: "Eu não faço receitas para os botecos do futuro". Era a consciência histórica de um pensador vigoroso, que não se propunha a desenhar futurologias utópicas e frisou que o comunismo não era um lugar ideal para onde o mundo deveria ir, mas o movimento real superador do estado de coisas atual, cujas condições resultam dos "pressupostos atualmente existentes".

Mas estes "pressupostos" contemporâneos a Marx eram os de um modo de produção que se, por um lado, como ele disse com Engels, varria todas as fronteiras pré-capitalistas do globo, por outro, existia – em forma mais desenvolvida – somente no "cantinho do mundo" da Europa. É o que lembra a primeira linha da "Introdução" do livro Para além do capital: rumo a uma teoria da transição, de István Mészáros, lançado no Brasil pelas editoras Boitempo e Unicamp.

Partindo dessa constatação, Mészáros, professor emérito da Universidade de Sussex (Inglaterra) e autor de obras como Marx: a teoria da alienação (Zahar), Filosofia, ideologia e ciência social e O poder da ideologia (Ensaio), atribui um triplo sentido ao título de Para além do capital, esclarecimento que por si só já mostra a magnitude do projeto teórico que atravessa as mais de mil páginas dessa obra. Primeiro: tal como era o intento de Marx, ir além do capital em si, e não só além do capitalismo. Segundo: ir além da versão publicada de O capital, de Marx, cujo projeto permaneceu inacabado. Terceiro: ir além do projeto marxiano tal como ele poderia ser pensado nos limites da ascensão inicial do capitalismo do século XIX, quando as formas atuais de adaptação e controle universal do capital não eram suficientemente visíveis ao exame teórico.

O centro da obra nutre-se de uma importante distinção entre capital e capitalismo, considerando que aquele antecede este. O capital se articula num tripé constituído entre capital, trabalho e Estado e consiste num processo metabólico de controle de todas as esferas da sociabilidade humana. Para Mészáros, o capitalismo pode ser derrubado por um ato político, mas não a lógica que preside o capital, nem o Estado, nem a divisão hierárquica do trabalho, cujas vigências podem repor o capitalismo. A esta incompreensão ele reputa a questão fundamental do malogro das sociedades pós-capitalistas (como denomina as sociedades que passaram por experiências socialistas no século XX) que, segundo ele, superaram a forma da dominação política capitalista, assim como formas de propriedade, mas não a regência do controle sociometabólico do capital.

O tríplice complexo constituinte da noção de capital, para Mészáros, articula, também, um novo conceito de Estado como parte estrutural do próprio sistema de reprodução do capital, superando, assim, a compreensão dicotômica entre capital e Estado como elemento superestrutural da sociedade burguesa. Por conta disso, Mészáros ironiza os ideólogos da redução da presença do Estado na economia e afirma que o complexo orgânico do funcionamento do capital não sobrevive sem a intervenção permanente do Estado. Portanto, como escreveu Ricardo Antunes, "a crítica radical ao Estado ganha sentido somente se a ação tiver como centro a destruição do sistema de sociometabolismo do capital".

Crítico implacável do evolucionismo dos defensores do "socialismo aos pouquinhos", da incoerência dos que pregam que "não existe alternativa" mas falam em "arte do possível" na política, e do saudosismo da esquerda social-democrata em relação ao "canto da sereia" do Estado de bem-estar, para Mészáros o capital vive uma crise de natureza estrutural. Neste sentido, a urgência do que ele chama de "atualidade histórica da ofensiva socialista" deriva da incontrolabilidade da produção destrutiva do capital, cuja necessidade de enfrentamento e superação é um desafio que diz respeito à própria sobrevivência física da humanidade. Razão pela qual Mészáros inclui, articuladamente a isso, como tema programático decisivo aos socialistas, a questão ambiental.

Tanto a questão ambiental como a luta das mulheres por uma “igualdade substantiva” seriam, segundo o autor, indicativos de que o sociometabolismo do capital, em sua forma altamente desenvolvida, já se coloca em antagonismo à própria produção social da vida, atualizando a afirmação marxiana sobre a contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas materiais e as relações sociais de produção, por meio da afirmação sobre o atual caráter destrutivo do capital. Esta tese, já presente em outras obras do autor, coloca exemplarmente os limites da incontrolabilidade do capital, assim como agudiza contradições presentes desde a origem do próprio capital, tais como a contradição entre o impulso à expansão, o caráter internacional do capital e as formas nacionais do Estado.

Outro ponto a ser destacado é o paciente e competente trabalho de crítica da crítica que, durante décadas, buscou atacar as premissas marxianas e desmerecer a cientificidade das afirmações de Marx. Neste campo, o autor dosa sua capacidade intelectual com tons de ironia e humor, quando, por exemplo, lembra a tentativa de relacionar as crises do capital com as manchas solares, como faz Jevons, ou às previsões sobre o crescimento da população, como faz Malthus.

Dentre outros aspectos do pensamento estratégico de sua obra, Mészáros tem fineza teórica suficiente para criticar a política staliniana que transformou os sindicatos em "correias de transmissão" do partido e, ao mesmo tempo, condenar a despotencialização da ação política radical pela separação entre braço político (partidos) e braço industrial (sindicatos) que, segundo ele, gerou uma autocensura defensiva na consciência do movimento operário, situação na qual os partidos foram reconhecidos ao preço de que as ações organizadas dos trabalhadores enquanto classe não tivessem fins políticos. Para Mészáros, como o capital tem o seu centro em si mesmo, e não no parlamento, é ilusória a esperança em qualquer reforma que possa alterar substancialmente as condições sociais do trabalho pela via meramente institucional, sem o concurso da intervenção de uma força extraparlamentar, apoiada em um amplo movimento de massas.

Recolhidas de forma fragmentária, estas são algumas das tantas idéias-força que o livro desenvolve, com impressionante riqueza conceitual e argumentativa, trazendo uma fundamental contribuição para uma teoria da transição ao mesmo tempo renovada e coerente com seus princípios emancipatórios.

Estilo arrojado, ironia, teses polêmicas, requinte e atrevimento teórico... Essas são algumas das qualidades potentes que recheiam as densas páginas de Para além do capital, que a revista inglesa Radical Philosophy chamou de "a primeira condenação de peso do capitalismo desde a queda do muro de Berlim", elogio que não deve elidir que muitos dos textos presentes neste livro foram redigidos bem antes da queda da URSS e do Leste europeu, inteligindo razões que levaram à inevitável falência desses sistemas, cujas contradições, como diz Mészáros, "estiveram visíveis por muitas décadas".

Para além do capital é, enfim, uma obra definitiva, forjada durante vinte anos de pesquisa e luta teórica. Muito provavelmente, a obra mais original e importante do pensamento marxista no último quartel do século XX. E um clássico indispensável para o século XXI.

Mauro Luis Iasi é professor da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul

Paulo Denisar Fraga é professor do Departamento de Filosofia e Psicologia da Unijuí (RS)