Estante

Paradigmas do capitalismo agrário em questão recebeu o Prêmio "Melhor Tese de Doutorado" do VII Concurso de Teses Universitárias e Obras Científicas em 1991, promovido pela Associação Nacional de Programas de Pós-graduação em Ciências Sociais (Anpocs). Para alguns, o resultado do concurso surpreendeu. Não porque duvidassem da qualidade do trabalho premiado. Surgiram dúvidas, porém, sobre a relevância e atualidade do tema. No Encontro da Anpocs ouvi dois jovens e promissores pesquisadores comentarem: "Esse negócio de questão agrária ainda existi?"

"Existindo o nome, existe o bicho". Abramovay cita este ditado popular nordestino logo no primeiro capítulo e não economiza bibliografia e reflexão para comprovar a importância da problemática e o vigor de suas idéias. Com o objetivo de ultrapassar o círculo dos estudiosos no assunto, justamente para possibilitar a aproximação de um público não especializado, o livro ganhou uma outra qualidade: é extremamente didático. Sem ser simplista, busca a simplicidade de quem quer se comunicar. Oito textos destacam-se da narrativa em forma de box para favorecer o entendimento através de conceitos-chave, trajetórias de autores ou casos ilustrativos. Com o mesmo objetivo, após cada capítulo há um resumo e conclusão.

E, afinal, qual é a tese premiada? Muitos argumentos e informações são acionados para comprovar que é em torno do estabelecimento familiar que se estrutura socialmente a agricultura nos países avançados. Tanto em nações economicamente desenvolvidas de colonização recente (EUA e Canadá), quanto em outras com tradições camponesas seculares (Europa Continental) funciona um setor atomizado em milhões de unidades agrícolas produtivas orquestradas pelo planejamento, comando e controle do Estado e das organizações profissionais. Diz Abramovay: "Apesar de sua base individual, é difícil imaginar atividade econômica mais socializada!"

Vê-se que o autor busca extrapolar pressupostos consagrados como a irreversível integração agricultura/indústria e a ampliação do trabalho assalariado como sinônimos do desenvolvimento capitalista. E confessa que foi a insatisfação com o conjunto conceitual com que vinha trabalhando que o obrigou a empreender um balanço de suas próprias convicções.

O "incômodo provocado pelo paradigma leninista/ kautskiano" (que pressupõe o proletariado rural carregando o futuro da produção agrícola e o declínio inevitável da produção familiar) exigiu e resultou num estudo minucioso de outras alternativas teóricas para compreender o campesinato. Assim se faz a primeira parte do livro: após constatar que não existe uma teoria da questão agrária em Marx e questionar o paradigma marxista enunciado, o autor apresenta estudiosos que tratam do "funcionamento deste organismo particular, que é a unidade camponesa".
Poder-se-ia perguntar se revisitar, hoje, autores como o tusso Chayanov, os poloneses Tepich e Galeski, Chanin e vários de seus contemporâneos que se dedicaram a caracterizar o campesinato em diferentes tempos e espaços, não seria, de certa forma, arrombar portas abertas. De fato, tais autores, principalmente nos anos 70, inspiraram um número considerável de estudos no e sobre o Brasil. Porém, existe uma novidade: para o autor a "empresa familiar" não é sinônimo de "pequena produção" ou de "agricultura camponesa".

Isto porque a existência do "campesinato" pressupõe um conjunto de vínculos sociais dados pela tradição, pela comunidade, pelas relações personalizadas de dependência e igualdade, e a integração incompleta e parcial no mercado. E, diz Abramovay, "onde o capitalismo se implanta, onde o mercado começa a dominar a vida social, onde a racionalidade econômica toma conta do comportamento dos indivíduos, os laços comunitários acabam por perder seu poder agregador e os camponeses vêem desvanescerem-se as bases objetivas de sua própria reprodução social". A empresa familiar é que seria criatura do capitalismo, ou melhor, do Estado capitalista.

O livro termina com uma agenda de pesquisa que os resultados alcançados sugerem. Esta resenha termina com a esperança de que, nestes tempos de questionamento de paradigmas, na comparação entre realidades internacionais e transnacionais, afastem-se as velhas tentações evolucionistas unilineares. Que este rico e inovador estudo de Abramovay nos leve a um diálogo entre semelhanças e diferenças historicamente construídas. Não me parece nada inovador dizer que "o Brasil ainda não enfrentou o dilema em torno do qual se estruturou o desenvolvimento agrícola dos países avançados". A estruturação da agricultura mundial é parte constitutiva da atual estruturação local e vice-versa. Resta saber que mediações podem ser feitas para que nos beneficiemos do conceito de "empresa familiar" neste país de dimensões continentais, em que tanto o evidente assalariamento no campo quanto a diversificada produção agrícola familiar realizam-se através de formas desiguais, combinadas ou transitórias. Além da econômica, é preciso discutir a segmentação política.

Isso sem falar em ecologia e proteção do meio ambiente que hoje revitalizam a questão agrária e podem proporcionar uma nova edição de experiências produtivas agrícolas baseadas em valores comunitários. Esta e outras questões estão no livro. É bom conferir.

Regina Novaes é antropóloga na Universidade Federal do Rio de Janeiro.