Estante

Um encontro da memória com a história – tortura: nunca mais!

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Ao Ítalo Tronca, aquele abraço!

O livro Pau de Arara – A Violência Militar no Brasil, até hoje anônimo e desconhecido no país, inaugura o novo projeto editorial da Fundação Perseu Abramo intitulado Cadernos Perseu: História & Memória.  A partir de agora, leitores e pesquisadores terão acesso a uma série de publicações e documentos inéditos ou pouco conhecidos que oferecerão subsídios importantes para o conhecimento das experiências vividas pelas organizações de esquerda no Brasil.

Esta primeira obra foi publicada em 1970 na França e em 1972 no México, anonimamente. Se considerarmos o prestígio das editoras responsáveis por seu lançamento, podemos imaginar a importância das denúncias de tortura cometidas pelo ditadura militar no Brasil que o livro traz. Mas finalmente, com esta nova edição, seus autores, Bernardo Kucinski e Ítalo Tronca, têm o devido reconhecimento. Segundo Kucinski, eles poderiam ter inventado um pseudônimo, assim como fez Chico Buarque ao criar seu Julinho da Adelaide, artifício comum em períodos de censura. Infelizmente, porém, terminaram por não utilizá-lo.

Outro aspecto a destacar diz respeito aos originais, em português, de Pau de Arara. Em depoimento que consta na edição atual, Kucinski diz desconhecer seu paradeiro. No Natal de 1969, foram levados para Paris e entregues, no então conhecido Café Cluni, ao jornalista exilado Luis Merlino, morto em 1972 pela ditadura militar. Tampouco se tem conhecimento de quem foi o responsável pela tradução do texto para o francês. Mas Kucinski reconhece que a melhor versão é a espanhola, feita pelo jornalista Flavio Tavares, tomada como referência para a edição de agora.

Quanto às editoras, cabe esclarecer o porquê de seu prestígio. A francesa Maspero foi uma das mais importantes na divulgação das ideias das esquerdas antes e depois do maio de 1968. Por meio dela pudemos conhecer livros de autores críticos do colonialismo e do subdesenvolvimento, de intelectuais de vertentes radicais como Louis Althusser, Regis Debray, Franz Fenon, entre outros, e também de Che Guevara. O mesmo podemos dizer da Siglo XXI Editores do México. Naqueles anos de extrema censura às editoras e aos jornais brasileiros, muitas das obras publicadas pela Maspero e pela Siglo XXI eram debatidas em grupos de leitura, quase clandestinos, de professores e estudantes universitários. Quem trouxe escondido um exemplar de Pau de Arara para o Brasil, dizem os autores nas entrevistas anexadas à edição de agora, foi Fernando Henrique Cardoso, provavelmente em 1974.

O livro de Bernardo Kucinski e Ítalo Tronca, apesar de não ter sido o primeiro a denunciar as torturas praticadas pelo regime militar, foi o que teve maior repercussão no plano internacional. Sua publicação ocorreu após a decretação do AI-5, quando se intensificou o exílio de centenas de brasileiros em direção à Europa e a países da América Latina, como o Chile, mas sua trajetória é difícil de ser reconstituída pelos próprios autores. O fato é que circulou entre os grupos de esquerda em Paris e acabou chegando ao México.

Pau de Arara é um documento revelador da atuação e da convicção de uma geração de jornalistas em defesa dos direitos humanos e principalmente da liberdade de imprensa e de informação. Escrito num período ainda anterior ao total recrudescimento da ditadura, de 1970 a 1975, antecipa e denuncia o circo de horrores que estava sendo construído nos porões dos Dops e dos DOI-Codis. O próprio título do livro é emblemático. Nenhum símbolo marcou tanto o regime militar brasileiro do que o “pau de arara”, o mais abominável instrumento de tortura utilizado nos órgãos de repressão. Além de sua “extrema simplicidade e facilidade de emprego”, era visto como “seguro” pelos agentes da repressão por não deixar marcas visíveis no corpo das vítimas.

Por ter sobrevivido à barbárie da tortura e da repressão, Pau de Arara deve ser valorizado como uma escritura do silêncio, tecida na quase clandestinidade, com o apoio e a solidariedade de colegas e amigos de profissão. Seus autores superaram todas as adversidades na composição de um painel histórico da violência institucional no Brasil. Avesso às ideias da cordialidade do povo brasileiro, o livro reconstrói a trajetória da violência institucional no Brasil produzida, inicialmente, pela polícia política de Getúlio Vargas na ditadura do Estado Novo, de 1937, e depois pelos militares que se instalaram no poder após o golpe de 1964. Uma continuidade assustadora que nos permite entender o modo como a sociedade brasileira ainda hoje é refém do aparato repressivo do Estado.

Dividida em três partes, a obra tem a capacidade de manter o leitor atento às condições históricas que propiciaram a instalação desses aparatos de violência e repressão que tiveram como um dos focos principais o combate às organizações e aos movimentos de esquerda no Brasil. Todos viveram praticamente na clandestinidade e na ilegalidade desde o Estado Novo até a instalação da ditadura militar. As duas primeiras partes do livro dão ênfase à montagem desses aparatos, tornando ainda mais chocante o capítulo final, dedicado aos testemunhos e aos documentos de homens e mulheres, estudantes, trabalhadores, sindicalistas, jornalistas e intelectuais submetidos às atrocidades dos porões da ditadura brasileira.

Por esse motivo, seus autores merecem o reconhecimento ainda que tardio do trabalho realizado. No anonimato, escreveram um dos mais importantes documentos de denúncia da tortura praticada nos subterrâneos da história brasileira. Kucinski e Tronca, atuando como jornalistas e com a ajuda de outros colegas de profissão, souberam enfrentar a censura do regime militar e encontraram em terras estrangeiras a solidariedade daqueles que na época também lutavam por um mundo mais justo e de maior respeito aos direitos humanos.

A Fundação Perseu Abramo não poderia ter sido mais feliz na escolha de Pau de Arara para inaugurar uma série de publicações sobre a história das esquerdas no Brasil. Sua leitura nos faz ainda mais convictos de quanto é importante as garantias conquistadas na luta permanente pela democracia no país. As esquerdas que sobreviveram, junto com outros setores importantes da sociedade brasileira, conseguiram finalmente derrubar a ditadura em 1984. Essa é maior prova de que todas as dificuldades enfrentadas para a divulgação do Pau de Arara valeram a pena. No dizer dos próprios autores, o livro é dedicado a suas vítimas. “Eles partiram por outros assuntos, muitos. Mas no meu canto estarão sempre juntos...”, para lembrar aqueles versos de Milton e Caetano.

Nota da Redação: O livro Pau de Arara: A Violência Militar no Brasil está disponível em .pdf para download.
Edgar Salvadori de Decca é historiador, professor titular da Unicamp e autor, entre outros, dos livros 1930 – O Silêncio dos Vencidos e O Nascimento das Fábricas, ambos da Editora Brasiliense