Estante

capa Por que gritamos golpe?No longo interrogatório midiático perante o Senado, a que se submeteu num outro dia 31, Dilma Rousseff vaticinou que a cassação do mandato de presidenta eleita seria uma “pena de morte política”. Entretanto, a Câmara Alta, talvez ciente da insustentabilidade jurídica da condenação, estabeleceu a pena capital, porém com “sursis”, afinal manteve-lhe os direitos políticos.

Ainda no mês de junho, no calor da votação e afastamento temporário na Câmara dos Deputados, a editora Boitempo preparou um livro analítico sobre o golpe que se esboçava. Por Que Gritamos Golpe? (Para entender o impeachment e a crise política do Brasil) pertence à Coleção Tinta Vermelha daquela editora. Pouco mais de trinta pensadores(1) de diversas áreas e agremiações da esquerda brasileira produziram um interessante manual de 176 páginas. Os artigos são curtos e de leitura quase sempre agradável. Na introdução de cada um deles encontramos uma charge de Laerte. Artista comprometido, crítico e com uma capacidade ímpar de desenhar a crua realidade política do país, Laerte nos faz sorrir um pouco de nossa desgraça.

Na contracapa do livro encontramos a frase síntese de professor Boaventura de Sousa Santos:

“Estamos envolvidos em uma luta não só nacional, mas internacional, dada a importância do Brasil. É imperativo unir os esforços e ter alguma clarividência sobre o momento difícil que enfrentamos. Estou absolutamente convicto de que se trata de um golpe parlamentar e de que estamos diante de um governo ilegítimo. Um golpe diferente dos que ocorreram em Honduras e no Paraguai, mas que tem, no fundo, o mesmo objetivo, que é , sem qualquer alteração constitucional, sem qualquer ditadura militar, interromper o processo democrático”.

Talvez esse seja um dos defeitos da publicação: a falta de contribuição dos pensadores estrangeiros, pois limitou-se a essas poucas linhas de Boaventura Santos. Faltou ainda uma análise mais profunda das questões jurídicas que levaram ao golpe, pois só contamos com um artigo (excelente, do juiz Marcelo Semer).

Vamos ao livro. Marilena Chaui entende que o golpe é fruto da ascensão de uma nova classe trabalhadora. Segundo a filósofa, em que pesem os avanços sociais dos treze anos e quatro meses de governos petistas, o capital rentista teve seus ganhos preservados. Ou seja, os ricos ganharam muito e os pobres tiveram ascensão social. O que criou fissuras no capitalismo de consenso de Lula e Dilma foi o esgarçamento da antiga classe média. Aquela que foi às ruas em março de 1964 e voltou a ocupar seu espaço a partir de 2013. Nesse sentido, o artigo de Chaui se coaduna com o texto de Lira Alli, líder de movimentos da juventude. É essa parcela da classe média e da “lúmpen burguesia”, na frase do político Roberto Requião, que acirrou os ódios represados. Uma classe “incivilizada, inculta, gananciosa, medíocre, sem nenhum senso de história, nenhum sentimento de nacionalidade, preconceituosa, teimosamente escravagista, patética, pretensiosa, a nossa burguesia, diria o pessoal da Porta dos Fundos, é o ó do borogodó” (p. 96). Para Chaui, faltou a absorção ideológica dessa nova classe trabalhadora pelo individualismo contemporâneo e suas duas facetas: a teologia da prosperidade e a ideologia do empreendedorismo. Como lidar com as questões de gênero, com o direito das minorias, ou mais direto e fascista: com o pobre e negro tomando o mesmo avião que eu.

Muitos dos artigos partem de um pressuposto comum: os tempos petistas produziram um grande avanço social por meio de políticas redistributivistas (limitadas, é claro); além disso, eles permitiram (muitas vezes inconscientemente) uma ascensão de novos atores políticos e sociais, quais sejam, o das eternas minorias excluídas: negros e negras, mulheres, LGBTs, sem terra, sem teto, movimentos de estudantes secundaristas, jovens da periferia etc. Em verdade, os últimos anos assistiram um fortalecimento dos direitos fundamentais e sociais previstos na Constituição de 1988. O golpe de 2016 veio para destruir a real democratização da sociedade brasileira. É um golpe contra o PT, contra Dilma e Lula, mas também uma estocada em tudo que se aproxime da esquerda ou ao direito das minorias. Em suma: é um golpe contra a História.

Requião, Ciro Gomes, Ruy Braga e Gilberto Maringoni não excluem o PT e suas lideranças do rol dos culpados pela vitória golpista. A política de coalizão com a banda podre do Congresso e com políticos facínoras como Renan, Maluf, Michel Temer e companhia, acreditando que estes teriam consciência da importância política das mudanças e, mais do que isso, que se calariam por alguns trocados. Outro problema: a aliança estratégica com o capital rentista (só em 2015 foram pagos R$ 500 bilhões de juros aos bancos) e com grandes conglomerados econômicos, quase sempre corruptos e corruptores, contaminando o governo e seus atores políticos.

O agora governo Temer avança rapidamente em sua agenda ultraconservadora, uma “...agenda do retrocesso que se deseja impor ao país – entrega do patrimônio público, avanço do fundamentalismo, retirada dos direitos trabalhistas, criminalização do pensamento crítico, recuo da legislação ambiental, arbitrariedade escancarada da força policial, cortes nas políticas sociais...” (p. 36). Murilo Cleto e Marina Amaral elencam o fim da democracia e a intervenção sem tanques estadunidenses na nova forma de golpe. Um golpe de “mais Mises e menos Marx”. O golpe da escola sem partido, ou seja, a escola do partido deles, a direita reacionária e com ódio nos dentes e de olhos esbugalhados.

Os últimos textos tratam de uma possível resistência política. Uma esperança de união das esquerdas, ou de uma frente ampla, como propõe André Singer. As esquerdas têm de sair do marasmo, denunciar a novela seletiva da Lava Jato, a mídia corporativa e sua velha aliança com o que há de mais arcaico no país, os interesses de uma subserviência internacional e o atendimento exclusivo dos interesses do capital no governo golpista que pretende solapar rapidamente as conquistas sociais brasileiras.

Consenso de Patolândia é o título da resenha dado pela farsa que se estabeleceu. Um neoliberalismo fora de época, distante do Consenso de Washington, patrocinado pela campanha do pato da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e a sensação de João Ninguém, típica da elite golpista, representada pelo pato-mor, José Serra, o ministro que acredita morar na República dos Estados Unidos do Brasil.

O golpe está sacramentado. Pensemos sobre ele e vamos à luta!

Martinho Milani é escritor e doutorando em História Econômica na Universidade de São Paulo