Por trás das chamas, os três mosqueteiros

São os três mosqueteiros, e dessa vez, três mesmo.

Os três mosqueteiros eram quatro: Athos, Porthos, Aramis e D’Artagnan.

Quem quiser, vá atrás do enigma.

De Alexandre Dumas.

Aqui, não.

São três, não há um quarto a intrometer-se na história: Carlos Tibúrcio, Nilmário Miranda e Pedro Tierra.

Três bravos mosqueteiros.

Todos advindos da luta contra a ditadura.

Todos com os mesmos sonhos, renovados.

E por isso, com toda autoridade para tratar de um país em chamas sob a ditadura.

Autoridade para entender o país por trás das chamas.

Capazes de produzir uma literatura, sim, por que não?

Literatura de intervenção política, pedagógica, e sem medo de considerá-la assim.

Há quem pretenda considerar a literatura algo fora da história, um óbvio contrassenso.

Eles se afastam dessa ideia.

Escrever, para eles, é combate.

No meio há até um poeta, grande poeta Pedro Tierra.

Ainda mais para quem, como os três mosqueteiros, sempre fizeram da luta ânimo para a vida.

Num país de tanta desigualdade, de tanto autoritarismo, nação a enfrentar ditadura por mais de 20 anos, só a luta anima a vida.

Ao menos para quem acredita na construção de um país capaz de acolher todo o povo.

Literatura oportuna.

Própria para o enfrentamento desses tempos de monstros, cheios de coragem para mostrar a cara, extrema-direita raivosa, alevantando-se em boa parte do mundo.

Própria para esses tempos de negacionismo, inclusive negação da ditadura-mãe da América do Sul, a do Brasil.

Para esses tempos de desvalorização de nossa memória histórica, presente nos quatro anos de um governo de extrema-direita, a celebrar o mais famoso torturador, Carlos Alberto Brilhante Ustra.

Própria porque se não lembrarmos o tempo do terror, os tantos crimes praticados pelas Forças Armadas brasileiras, o sangue derramado, se não fizermos isso estamos condenados a repetir a tragédia, como farsa ou não.

O exemplo de 8 de janeiro de 2023 está aí para demonstrar isso.

O livro, bem documentado, é também uma espécie de pauta, como costumamos dizer no jargão jornalístico.

Própria para nossa juventude, boa parte sem conhecimento de anos sombrios povoados pela morte.

Para revelar, também, a existência de tantas mulheres, tantos homens, tantos jovens, tantas pessoas maduras envolvidas na luta.

Cheios de esperança, de sonhos.

Capazes de jogar a própria vida, de encarar os monstros, de pela coragem suplantar o medo.

Muitas vidas, perdidas nas catacumbas e fornos do terror.

Não, não aguardem leitura amena.

Necessária, imprescindível.

Para conhecer o Brasil de então.

Mas não agradável.

A leitora, o leitor, serão levados àqueles ásperos tempos.

Levados à Casa da Morte, um terrível centro de tortura e morte, em Petrópolis, de onde restou uma única sobrevivente, cujo nome e breve história o leitor saberá lendo o livro.

Para interessar, lembrar apenas ela ter passado cem dias naquela Casa da Morte.

Ter saído dali com quarenta quilos, e se entregado para cumprir pena de oito anos no presídio Talavera Bruce, complexo de Bangu, no Rio de Janeiro.

Conhecerão estranhas, terríveis figuras.

Um ex-delegado convertido, religioso na maturidade, ansioso por fazer uma confissão.

Um monstro.

Arrependido, vá lá se saber em que medida.

Transportava corpos de ex-militantes, já serrados, aos pedaços, oriundos da Casa da Morte e do DOI-CODI do Rio de Janeiro, para a Usina Cambahyba, em Campos de Goitacazes.

Para a tal usina, numa macabra operação, o ex-delegado transportou quatro corpos oriundos do DOI-CODI e oito da Casa da Morte.

Não fosse bastante todo esse terror, agora uma sequência ainda mais impressionante, como a recordar, e recordando, as práticas do nazismo, sem tirar, nem pôr: os corpos, incinerados nos fornos da usina.

Tudo obedecendo a ordens vindas de cima, dos manda-chuvas do DOI-CODI do Rio de Janeiro, trabalho feito depois das 18 horas para não dar na vista, depois de encerrados os trabalhos rotineiros de moagem da cana de açúcar.

No livro, todos vão saber os nomes dos corpos incinerados, as organizações revolucionárias a que pertenciam, levantamento cuidadoso, bem ao estilo dos três mosqueteiros.

Leitoras, leitores vão saber também: os DOI-CODIs eram senhores de baraço e cutelo, recebiam carta branca, autonomia, recursos financeiros e torturadores de mão cheia.

Autorizados, sequestravam, faziam prisões arbitrárias, torturavam, matavam, faziam desaparecer os corpos sem deixar vestígios.

Impressionantes máquinas de moer gente, e não é figura de retórica ou tentação panfletária.

O general comandante da Região Militar tinha nas mãos o comando dessa estrutura sangrenta, de tortura e morte.

Leitoras e leitores vão conhecer a Ação Libertadora Nacional (ALN), o mais numeroso grupo de militantes a assumir o caminho da luta armada como estratégia para derrotar a ditadura.

Vida curta, a da ALN, de 1967 a 1974.

Vida curta e de ações espetaculares.

A maior delas, o sequestro do embaixador americano, Charles Burke Elbrick, em parceria com o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), segundo semestre de 1969.

Ditadura não perdoou.

Massacre sobre a ALN: 51 mortos e desaparecidos.

E não conseguiu lançar a guerrilha rural, objetivo estratégico da organização.

Restou isolada política e militarmente das forças vivas da sociedade, como o livro registra.

Foi derrotada pela força colossal da ditadura, a serviço de interesses antinacionais e antipopulares.

Aniquilar o inimigo sempre foi uma espécie de mantra do regime militar.

Assim foi com o Movimento de Libertação Popular (Molipo), dissidência da ALN, nascida em 1971.

Massacre: ditadura mata dezessete militantes da organização revolucionária entre 1971 e 1974.

Ditadura, um regime de massacres.

A matar os melhores filhos da Nação.

A oferecer não só a tortura, mas também homens dispostos à delação, como ocorreu em algumas ocasiões, destruindo organizações revolucionárias e provocando a morte de tanta gente – o livro documenta tudo isso.

Quem percorrer as páginas dele, acompanhará o surgimento da VPR, da VAR-Palmares, do PCBR, MRT, AP, Polop, de tantas outras organizações revolucionárias, adeptas da luta armada.

No livro, o choro pungente da mãe diante do filho morto e desaparecido, a simbolizar as lágrimas de tantas outras mães na mesma situação.

Saberá de lágrimas, de muita dor pelos mortos na Guerrilha do Araguaia, corpos destruídos, e dos quais até hoje não se sabe o destino.

Chaga aberta até hoje.

Uma fresta se abre para enfrentar a dor de tantos corpos insepultos com a reinstalação por decisão do presidente Lula da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos, extinta pelo governo anterior.

A leitura permitirá se conheça o chamado Massacre da Lapa, de dezembro de 1976.

Com isso, se pretendia repetir o massacre realizado contra o PCB, com a chamada Operação Radar, quando a repressão entre 1973 e 1975 mata 11 dirigentes do longevo Partidão e prende 700 militantes e dirigentes regionais.

Na operação da Lapa, pretendeu-se eliminar a direção do PCdoB, reunida na rua Pio XI, naquele bairro da capital paulista.

Três dirigentes mortos, muitos presos, todos torturados barbaramente.

Ler “Por trás das chamas” permitirá ainda compreender uma parte da trajetória da Igreja Católica.

A instituição envolve-se profundamente na resistência, sendo retaguarda essencial aos revolucionários, quando se assistiu ao surgimento da mais notável geração de bispos, arcebispos e cardeais da história do Brasil, plena de amor cristão, de coragem, e de compaixão pelo sofrimento das vítimas da ditadura.

Talvez hoje, sessenta anos passados, a Igreja Católica se ressinta do inequívoco apoio dado ao golpe e, também, sinta saudades daquela geração de bispos, num momento de ascensão de outras concepções cristãs, avessas a quaisquer progressismos, já em vias de superar a hegemonia católica.

Tanto quanto se assiste hoje ao inegável crescimento do pensamento da ultradireita em todo o mundo, à época, a partir da implantação da ditadura no Brasil, a repressão se internacionalizou.

As muitas ditaduras estruturaram uma espécie de central do terror na América Latina, prendendo, sequestrando e matando quem a elas se opusesse.

Essa multinacional do crime tem uma espécie de certidão de batismo dois anos após o golpe chileno contra o presidente Salvador Allende.

Nasce em 1975.

Essa monstruosa organização, responsável por matar tantos revolucionários de vários países, ganhou a denominação de Operação Condor.

Como o anjo da história de Walter Benjamin olhando perplexo e assustado para tanto absurdo, necessário cobrar das sociedades do Cone Sul uma clara atitude de recusa à contemporização com a barbárie e com o esquecimento.

Não lembrei nomes, propositadamente.

São inúmeros.

Lembrasse alguns, deixaria outros de lado.

Na leitura, eles aparecerão.

Em memória de tantas vítimas, recordo de dois, somente dois.

Os dois Carlos.

Presentes no livro: Marighella e Lamarca.

O primeiro, tombado no dia 4 de novembro de 1969 na capital paulista, covardemente.

Emboscada dirigida por Sérgio Paranhos Fleury.

O segundo, morto no dia 17 de setembro de 1971 no sertão da Bahia, covardemente.

Emboscada dirigida pelo major Nilton Cerqueira.

Dois heróis do nosso povo, capazes de simbolizar tantos outros heróis tombados ao longo da luta contra o regime militar.

As chaminés da Usina Cambahyba, as celas da Rua Tutoia e do Dops paulista, as masmorras do Forte do Barbalho em Salvador, para citar tais símbolos de repressão, dor e morte, não permitem o esquecimento.

Lembrar, e lembrar sempre, modo a não permitir a repetição.

Recuperar a memória daqueles tempos sombrios modo a não vê-los de volta.

Esse é o esforço de “Por trás das chamas”.

Esforço nascido das convicções intelectuais dos três mosqueteiros.

Da persistência deles na luta.

Não desistir em tempo nenhum.

Porque desistir significa permitir o ressurgimento das flores do mal.

O livro insiste em manter a memória viva.

Alertar, sobretudo, as novas gerações sobre aqueles tempos sombrios.

Ainda sentimos o calor daquelas chamas, qual fogo de monturo.

Não temos o direito de esquecer – é esse o recado dos três mosqueteiros.

Insistem os três da possibilidade, nas mãos do nosso povo, dos povos do mundo, da possibilidade de um mundo generoso, capaz de um dia superar a monstruosidade de uma humanidade fundada na mercadoria, esse mundo de coisas, de superexploração do ser humano pelo ser humano, sempre fundado na violência.

Leiam o livro.

Mesmo sentindo o calor das chamas.

Mesmo queimando a pele.