A bibliografia sobre a história da organização política Ação Popular (AP), uma das mais importantes da esquerda brasileira nas décadas de 1960 e 1970, foi enriquecida com a publicação do livro Por um Triz: Memórias de um Militante da AP, de Ricardo de Azevedo.
O autor integrou as fileiras da Ação Popular de 1968 a 1980 e, quando interrompeu o vínculo, fazia parte de seu Comitê Central e do Secretariado Nacional. Motivou-se a escrever tais memórias por haver sido alertado de que se tratava de uma biografia militante que reunia, de maneira pouco comum, três experiências relevantes: prisão, exílio e clandestinidade. Concluiu, também, que sua militância se confundia com um período da história da AP, particularmente o final, sobre o qual, ponderou, havia poucos registros. Com efeito, embora haja testemunhos de outros militantes e dirigentes, não se conhece, no universo editorial, nenhum tão detalhado e abrangente sobre os últimos anos da AP.
Não houve a pretensão, segundo afirma o autor, de escrever uma história da AP ou da esquerda do período. Seu objetivo era “apenas deixar um depoimento de um ativo militante de esquerda”, no intervalo assinalado. Essa advertência deve ser vista, porém, como demarcação da natureza da narrativa, situada no campo da memória, e não como uma redução de sua importância.
Construída na interseção da experiência individual com a coletiva, a memória é subjetiva, afetiva e seletiva. Em sua relação com o passado, deve-se observar a mediação da experiência posterior à situação vivida. Não é um simples resgate de fatos. Assim, Azevedo elabora uma interpretação densa e singular da experiência da AP.
Roteiro de viagem
É lícito lembrar que existem, dependendo da fase de participação e dos alinhamentos nas lutas internas, muitas disputas de interpretação sobre a história da AP. Ricardo de Azevedo delimita, com cuidado, o território de sua atuação. Informa que se aproximou da Ação Popular nas jornadas de 1968 e concluiu a adesão em 1969. Ressalta que fez parte da AP maoista e não teve vínculos com sua identidade de origem, ainda influenciada pelo humanismo cristão.
A narrativa discorre sobre as principais ocorrências e temas que marcam a vida da AP daí em diante. No início da década de 1970, a AP, já renomeada como Ação Popular Marxista-Leninista, viveu acirrada luta interna no aprofundamento da elaboração de sua estratégia e da construção do partido de vanguarda, que resultou em uma cisão. Em 1973, grande número de militantes, referidos como a maioria, considerou esgotada e extinta a trajetória da AP e decidiu incorporar-se ao PCdoB, saudando-o como o partido histórico do proletariado brasileiro. Outra ala buscou reorganizar a AP e atualizar sua pauta. Incluído entre os últimos, Ricardo de Azevedo viveu o desfecho dessa disputa no Chile, onde se exilou em 1972.
Esse exílio é tema de uma das seções mais marcantes do livro. O autor aborda as nuanças internas da base chilena da AP, na qual convivia com José Serra e Herbert de Souza, as relações com exilados das demais organizações da esquerda brasileira. Assinala, aqui, o processo de autocrítica que a esquerda revolucionária iniciava acerca da militarização de sua estratégia. Focaliza, ainda, o envolvimento com a esquerda chilena e o processo político liderado pelo presidente Allende, encerrado pelo golpe de Estado de setembro de 1973. Não menos impactante é o relato sobre a repressão que sobreveio, da qual, junto com outros exilados, ele foi alvo.
Salvo das piores consequências do golpe por um triz, graças sobretudo ao apoio de seu pai, Azevedo terminou por exilar-se na França, onde participou das articulações em favor da constituição da chamada “Tendência Proletária”, as quais envolviam, além da AP, o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), a Política Operária (PO) e o Movimento de Emancipação do Proletariado (MEP). Com Eder Sader (PO) e Franklin Martins (MR-8), tornou-se um dos editores da revista Brasil
Socialista, veículo da Tendência Proletária, que era publicada no exterior e circulava em nosso país.
Em 1976, encerrou o exílio e passou a viver clandestinamente no Brasil, a fim de participar do processo de reconstrução da AP, cuja fragilidade organizativa, provocada pela recente cisão e por quedas impostas pela repressão, foi descrita sem evasivas. Incorporado imediatamente à direção nacional, Azevedo esquadrinhou a rearticulação da AP no movimento estudantil, a incorporação de novas pautas, como as lutas por igualdade de gênero, o envolvimento com o mundo sindical, a ampliação da organização para outros centros regionais fora do eixo Rio-São Paulo.
Demonstra-se como, no seio da esquerda revolucionária, a AP distinguiu-se por revalorizar, desde 1974, a tática eleitoral em sua estratégia política. No final da década, além de conseguir eleger deputados pelo MDB, procurou elaborar uma intervenção para a conjuntura da abertura política. Sem abrir mão do objetivo de construção do partido de vanguarda, propôs, inclusive, a formação de uma legenda que atuasse como frente política na nova legalidade, à esquerda do MDB, o Partido Popular. No final de 1979, inviabilizado esse projeto e com objetivo semelhante, a AP aderiu ao processo de formação do PT, no interior do qual não tardou a se desagregar. Esmiuçando essa conjuntura, Azevedo explica as razões que o moveram a desligar-se da AP no início de 1980 e a participar individualmente da fundação do PT, que abria, em seu entendimento, nova fase para a esquerda brasileira.
Imprimindo sentidos
Ricardo de Azevedo produziu uma narrativa despojada, no estilo coloquial de escrever e na atitude diante da história vivida. Em várias passagens, atenua as duras circunstâncias de sua militância. Embora não esconda que viveu momentos de fragilidade, repetidas vezes acentua que “teve sorte no infortúnio”, sugerindo que havia escapado do pior. Além disso, não tem receio de expor ocasiões em que se encontrou em “crise ideológica”. Na gíria empregada, diz que estava “de cuca fundida”.
As crises não eram estéreis. O autor revela como suas posições se atualizaram na dialética da luta. Em 1970, detido no presídio Tiradentes, começou a questionar a linha política da AP, influenciado por novas leituras e cursos ministrados por Jacob Gorender. No Chile, aprofundou sua formação, com amplo acesso bibliográfico e contato com o processo político daquele país. No exílio europeu, ampliou horizontes, conhecendo outros referenciais teóricos, sobretudo Gramsci, e novas pautas, como a questão ambiental e as lutas de gênero. De volta ao Brasil, sofreu o impacto da ascensão dos movimentos sociais. Ao sair da AP e participar da fundação do PT, completou o que chamou de ruptura final com o leninismo.
Essa dialética ajuda a compreender a forma como avalia a experiência que viveu na AP. Considera que a adesão da AP ao marxismo deu-se de maneira dogmática, sem romper com a atitude religiosa que estaria presente em sua origem. Na luta interna seguinte, demonstra compreender o fato de a maioria da AP ter-se incorporado ao PCdoB, movida por afinidades políticas. Recusar esse caminho, como fez a ala a que pertencia, significava não apenas questionar a estratégia, mas “desbravar novos caminhos teóricos e políticos numa conjuntura absolutamente adversa”.
Apesar de ter participado desse “desbravamento” e do esforço de reconstrução da AP, avalia que sua história, de certa forma, teria sido encerrada em 1973, por causa do racha, do cerco repressivo e das quedas. Garantida pela perseverança de Jair Ferreira de Sá, pela rearticulação do movimento estudantil e pela valorização da tática eleitoral, a experiência posterior seria uma espécie de sobrevida.
Aliando uma interpretação instigante a uma narrativa envolvente, o livro de memórias de Ricardo de Azevedo já nasce como referência indispensável para o estudo e a reflexão sobre a história da AP e da própria origem do PT.
Reginaldo Benedito Dias é professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá (PR)