Estante

“Mas há os que lutam por toda a vida. Esses são imprescindíveis.”  

(Brecht)

 

E o que pode dizer o poeta

– para quem não há transcendência – 

diante do teu corpo a caminho das cinzas

e de teu espírito de luta venerado

por amigos, filhos, amores, todos

varados pela dor de tua perda?

 

Se não pode o poeta lhe oferecer estrelas,

passagem, páscoa, retribuições,

alguma dimensão ou conforto celestiais,

uma paz que você mal conheceu aqui

– no tempo sombrio que te coube viver –

dividido entre uma e outra batalha

como voz de quem ocupa o palco

e se sabe voz de sonhos gerais,

de gerações de lutadores,

grave, terna, a repartir inquietações e utopias?

 

Sob o azul impiedoso dos cerrados

ergo a mão esquerda para colher

a multiplicação do sol que explode

nos ipês deste setembro,

pleno de presságios,

para lançar alguma luz

sobre teu rosto serenado

e resgatar do silêncio 

a voz raptada por serafins para nos dar alento 

quando regressarmos depois de amanhã

ao combate das ruas,

nutridos por tua memória

duas ou três sementes de esperança

cultivadas no peito,

regadas com as lágrimas escassas

nesse tempo de dores extensas.

 

Ocupados em reinventar

a primavera pública que se anuncia...

 

Brasília, 15 de setembro de 2021