Estante

A Folha é hoje o nosso jornal mais lido e menos amado. Completa-se assim a hegemonia desse diário, que passou a substituir o Estadão também no campo das relações afetivas entre a imprensa e seus leitores. Pois não era o Estadão nos anos 50 o jornal mais lido do país, e o mais odiado?

Mas o Estadão não se pretendia odiado; era um preço pago pela primazia dada a um projeto político que não era mero reflexo de uma suposta ideologia dominante, era produzido no interior do próprio jornal e, através de suas páginas, proposto às oligarquias. A agonia irreversível do Estadão decorre principalmente da perda da capacidade de reprodução ideológica.

A Folha não só reconhece que não é estimada como manipula conscientemente o marketing do ódio: "Como dosar esse amor e ódio, como irritar o leitor e satisfazer o leitor é o segredo do sucesso", diz Carlos Eduardo Lins da Silva, um dos formuladores dessa incrível experiência de manipulação jornalística (FSP, 1/12/84). Nota-se, pelo seu texto, que Lins da Silva nunca chegou a perceber a gravidade do que fez.

O erro em justificar a prática da manipulação sistemática e refinada, e erigi-la conscientemente em método do principal jornal diário do país.

Otávio Frias Filho, outro mentor desse projeto, ao contrário de ingênuo, admite cinicamente que é isso mesmo e racionaliza. Considera que os jornais sérios apenas dissimulam, sob um estilo elegante, as mesmas técnicas do jornalismo sensacionalista e que a relação leitor-jornal é vampiresca: "O vampiro não pode entrar numa casa sem antes ter sido convidado". "O marketing jornalístico (...) manipula a atribuição de uma curiosidade ao público e fica à espera de sua resposta, que será um convite ou uma proibição (...) só é possível manipular quem desejou ardentemente ser manipulado." (FSP, "Folhetim") Mino Carta, que prefaciou o livro post mortem de Claudio Abramo e posfaciou o de Carlos Eduardo, matou a charada: "Essa concepção transforma o jornalismo num jogo de dosar o bem e o mal, o que é uma coisa muito da tortura" (FSP, 1/12/88)

A pergunta que se faz é: como foi possível chegar a isso? O Projeto Folha começa com Claudio Abramo, por mais que Lins da Silva queira negar. As regras do jogo revela um Claudio Abramo extremamente contraditório, não realizado e até infeliz. Um homem radicalmente fiel ao paradigma da esquerda humanista, mas ao mesmo tempo com raiva das esquerdas. Claudio Abramo desperdiçou energias, tentando inutilmente reeducar os barões da imprensa brasileira, fazer deles uma elite educada para o espaço público. Não só não conseguiu como parecia esmagado pelo crescimento do monstro que ajudara a criar com seu projeto de reforma da Folha.

O atual Projeto Folha pode ser explicado como resultado de múltiplas rejeições: Frias Filho rejeitando o pai, por intermédio da figura substitutiva de Claudio Abramo; uma geração nova, rejeitando as anteriores, a dos demitidos da Folha a partir de 1980; a "libelu" (que forneceu alguns dos quadros centrais dessa nova geração), repudiando o esquerdismo da adolescência, visto hoje por eles como um lamentável equívoco.

O Projeto Folha é também uma proposta de poder: o medíocre micropoder que se afirma nas redações através do direito capitalista de demitir, de excluir o intransigente ou o contestador, de mexer nos textos dos repórteres, de humilhar, através dos controles quantitativos de produção, da rotatividade regular de até 55 por cento da mão-de-obra, da transformação da redação em linha de montagem, em oposição a tudo o que se consagrou no mundo como o bom jornalismo liberal.

Finalmente, o projeto de poder político que a Folha perseguiu não pelo político, mas pelo prazer de sentir que fez história - que fez a campanha das diretas-já, que manipulou não só indivíduos, mas também a massa. Uma recriação, no real, de Cidadão Kane, o filme paradigmático do projeto Folha.

O que precipitou a transformação do projeto Abramo na sua antítese foi nossa prosaica e velha conhecida "luta de classes". Está implícito, tanto no relato de Claudio Abramo como no de Lins da Silva, o papel decisivo da greve dos jornalistas, em 1979, na transformação do projeto liberal da Folha, de Claudio Abramo, no projeto autoritário da dupla Lins da Silva-Otavinho.

O projeto liberal de Claudio Abramo deu à Folha a página 3, e um papel proeminente na abertura democrática, uma apropriação das experiências da imprensa alternativa que atingiu seu apogeu nessa época. O texto do projeto de política editorial de Claudio Abramo, de 1978, poderia ter sido copiado de Movimento: "liberdade de informação, fortalecimento da sociedade civil, distribuição mais eqüitativa da renda..."

Mas a democracia, mesmo quando adotada como produto para venda, nunca foi aceita como direito e modo de trabalho nas redações. E a greve dos jornalistas de 1979 colocava como um de seus requisitos a democratização das redações. Claudio Abramo tentou negociar e rodou. A greve teve a adesão de todos, inclusive das chefias. O primeiro documento do novo projeto Folha tem como único e exclusivo conteúdo a cobrança de vassalagem, a justificativa da repressão que se seguiria: "Pede aos ocupantes dos cargos de chefia que façam uma opção permanente por esse projeto ou deixem suas posições..."

Autoritário na sua proposta e no seu funcionamento interno, o projeto Folha procura agora as soluções estéticas condizentes. A última receita é a do jornal americano US Today, o jornal dos gráficos e dos mapinhas, coluninhas de serviços e perguntas para responder "sim, não e talvez". Esses ingredientes, além de terem dado certo no US Today, têm a vantagem adicional de irritar o tradicional leitor intelectual da Folha. É preciso alimentar a relação sadomasoquista...

Bernardo Kucinski é jornalista e membro do Conselho Editorial de Teoria e Debate.