Estante

Questão de ÊnfaseEm quase meio milhar de páginas, o visgo da leitura deste volume não esmorece um só minuto. Infelizmente, a recente morte da autora desfalcou em medida nada desprezível o ativismo dissidente nos Estados Unidos. Esta intelectual de esquerda expunha, em sua forte personalidade que aliava reflexão a ação, um tipo de compromisso muito em falta no mundo de hoje e cujo modelo foi Jean-Paul Sartre. Seus conterrâneos Noam Chomsky, Edward Said – também há pouco falecido – e Gore Vidal não des­toam na linha do pensamento crítico, que raramente consegue acesso à mídia de massa naquele país, onde impressionam o totalitarismo que ensurdece a opinião e o decorrente conformismo no mundo das idéias.

De uma criatividade invejável, escreveu incessantemente, produzindo ensaios, ficção, teatro, dirigindo filmes e peças. Nem por isso deixou de tomar posição nas causas do tempo, sempre que fosse necessário alçar-se em favor dos injustiçados. A ponto de marcar presença física: lá estava ela em Hanói, bombardeada por seus compatriotas, tal como em Sarajevo sitiada, durante a conflagração que dilacerou a ex-Iugoslávia. Defensora dos palestinos, ao receber o prêmio Jerusalém em 2001 protestou contra o tratamento que Israel dá aos árabes. Seu livro Diante da Dor dos Outros (2003) (ver resenha em Teoria e Debate nº 56), dedicado à exegese das imagens do horror com que a mídia nos assedia, seria completado por artigos analisando as fotos clicadas pelos soldados americanos como suvenir das torturas que praticavam numa prisão iraquiana. Opôs-se à invasão do Iraque, assim como foi voz discordante ao falar dos atentados ao World Trade Center. Se dissermos que ela era uma ativista dos direitos humanos, não a estaremos desmerecendo.

Cobradora implacável dos desmandos do poder em seu país e em qualquer outro, colocou sua pena a serviço da justiça, a que se consagrou como uma passionaria, sem entretanto trair sua mente analítica.

Na obra anterior, além da crítica literária e cultural mais abrangente, sobressai pela originalidade o livro A Doença como Metáfora, depois complementado por um estudo sobre a Aids. Tratando de objetivar uma experiência pessoal, voltou-se para a figuração da tuberculose e do câncer em literatura, extraindo ilações sobre a culpabilização do doente pelas instituições médicas e hospitalares. Seu trabalho é uma fulguração de conhecimento sobre assunto socialmente turvo.

Este último livro, Questão de Ênfase, sai aqui quase simultâneo à notícia de seu falecimento. Compreendendo 41 textos, entre ensaios mais longos e artigos às vezes curtíssimos, divide-se em três partes, sob os títulos “Ler”, “Ver”, “Lá e aqui”. A primeira, mais unitária, refere-se evidentemente à literatura. A segunda dirige-se ao cinema, ao teatro, à ópera, à dança, à fotografia. A terceira focaliza as viagens, as suas próprias ou as de outrem.

Fica difícil pôr o dedo em cima do que mais admirar no livro, se a lucidez, a sensibilidade, a consciência afiada. Como Susan Sontag está entre os poucos que honram a existência da crítica literária, chama a atenção o que sabe extrair da convivência com certas obras. Jamais se volta para esses livros que são fruto dos jogos do mercado ou de considerações mercenárias. Nenhum autor de best-seller merece seu escrutínio, a moda mercantil deixando-a indiferente. Mas faz agudos reparos sobre o que é a literatura no mundo de hoje ao estudar livros centro e leste europeus, fora das correntes dominantes: este olhar deslocado propicia suas melhores teorizações sobre a forma. Não é por tratarem de assuntos de uma dada parte do planeta que esses autores se tornam interessantes, mas sim pelo que de suas circunstâncias se revela na forma – em seu discurso, em sua dicção, nas soluções técnicas surpreendentes. São exemplares as análises de alguns escritores, como o iugoslavo Danilo Kis, sérvio-húngaro-judeu, ou o alemão Robert Walser, o polonês Gombrowicz, os russos Joseph Brodski e, recuando até o início do século, Marina Tsvetáieva. A esses excêntricos, ou descentrados, podemos acrescentar o entre nós célebre ensaio sobre Dom Casmurro, e outro sobre Juan Rulfo.

Na segunda parte, “Ver”, notamos a intensidade com que utilizava os olhos, desnudando a paixão que lhe despertava o ato artístico, a obra de arte, o desempenho. Destaca-se o conjunto de artigos sobre o balé moderno, cuja evolução acompanhou na condição de nova-iorquina, desde os primórdios com Balanchine e o New York City Ballet, passando depois por Martha Graham, Twyla Tharp, Merce Cunningham, e outros; mas concede atenção também ao balé clássico, de ponta. Há um belo ensaio sobre Wagner, em que privilegia a presença simbólica do sangue, da água, dos bálsamos e das poções. E textos sobre cinema ou sobre filmes, comportando o elogio da cinefilia, cuja trajetória de um século é passada a limpo.

Nessa parte constam trabalhos sobre fotografia, tema sobre o qual discorreu por quarenta anos e no qual se tornou autoridade. Entre eles, um dos mais surpreendentes da coletânea, que nem mesmo o título esclarece: “Uma foto não é uma opinião. Ou é?” A pretexto de comentar um álbum de imagens femininas, a autora articula um crivo muito pessoal que lhe permite passar das efígies aos seres humanos retratados, decifrando o contexto na linguagem corporal, no penteado, nos traços da face, na vestimenta. E daí deduzindo um capítulo da história das mulheres, ainda em processo.

Na terceira parte, a propósito de viagens, suas e dos outros, surgem observações sobre turismo, flagelo de nosso tempo, mesmo quando político e cultural, conjuntura em que os equívocos se acumulam. Nesse terço final não há como fugir ao relato da encenação de Esperando Godot, de Beckett, que dirigiu sob o troar da metralha, ao longo de nove sucessivas viagens a Sarajevo. As agruras da situação não impedem a devoção de todos os envolvidos na tarefa, quando só a arte tem o condão de redimi-los do desespero.

Ao escrever, dez anos após a morte do escritor, a carta a Jorge Luís Borges incluída no presente volume, manifesta a crença na importância da leitura como espaço da interioridade, tanto quanto da literatura como súmula dos sonhos e da memória da humanidade. E dos livros também, porque estes são “modelos de autotranscendência”.

Uma profissão de fé nos deveres do intelectual encontra-se expressa em “Respostas a um questionário”. Admitindo que os haja religiosos ou nacionalistas, no entanto considera-se partidária dos seculares, cosmopolitas, antitribais. A competência é necessária mas não suficiente: é preciso ir além e defender a vida da mente, com probidade e responsabilidade. Susan Sontag não se envergonha de postular a excelência, a perspectiva ética, o compromisso com valores mais altos, sustentando tratar-se de algo imprescindível para resistir ao consumismo, ao niilismo e à privatização dos interesses.

Walnice Nogueira Galvão é crítica literária e integra o Conselho de Redação da revista Teoria e Debate