Estante

A biografia de Raúl Prebisch (1901-1986), escrita por Edgar J. Dosman, ganhou uma rápida traduçãoE.J. Dosman. The Life and Times of Raúl Prebisch (1901-1986). Mc Gill – Queen’s University Press, Canadá. e edição pela editora Contraponto, apoiada por uma série de órgãos públicos e pelo Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento. Considerado um dos “livros do ano” pela revista The Economist, o trabalho de Dosman põe em evidência não apenas a vida de um dos mais importantes economistas da América Latina, tanto no campo acadêmico como na formulação e proposição de políticas públicas, mas também a agenda do debate desenvolvimentista.

O livro engrossa uma já robusta série de estudos sobre a trajetória de vida de Prebisch, na qual se destacam o prefácio de Adolfo Gurrieri em uma antologia publicada em 1982Adolfo Gurrieri (ed.). La Obra de Prebisch em la Cepal. Ciudad de México: FCE, 1982, 2 volumes. e um trabalho excelente de Carlos Iñiguez, de 2003Carlos Piñero Iñiguez. Herejías Periféricas: Raúl Prebisch, Vigencia de Su Pensamiento. Buenos Aires: Nuevohacer, 2003.. É possível dizer que a obra de Dosman completa uma trilogia de introdução a Prebisch e ao pensamento desenvolvimentista que municiaria adequadamente qualquer estudioso desejoso de se embrenhar no assunto. Há vasto material informativo: são 21 capítulos, amparados por uma bibliografia de quase trinta páginas e um índice onomástico amplo.

O interesse de Edgard Dosman, na realização de sua pesquisa, esteve próximo da captação de um Prebisch mais definido do que a bibliografia à sua disposição lhe teria proporcionado. Para tanto, o autor vai além do caráter ilustrativo de uma forma de pensar heterodoxa – demanda natural da ortodoxia econômica europeia e estadunidense. Apresenta uma proposta, arrojada, de entendimento do papel de Raúl Prebisch em suas diferentes esferas a partir dos aspectos de sua vida pessoal, desde sua formação familiar até suas relações pessoais, o que certamente torna a leitura muito agradável aos conhecedores de suas teses e de sua importância acadêmica e política. A avaliação do êxito de tal iniciativa fica a cargo do leitor.

Quando se observa o título do livro na tradução para o português, fica-se com a impressão de certa confusão do autor entre a biografia e a história de seu objeto. O economista argentino, ainda que tenha emprestado sua reputação acadêmica e política ao processo de criação da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal), dificilmente a resume ou a limita. E inegável a contribuição de outros intelectuais coetâneos, como Celso Furtado e Noyola Vasques. Nesse ponto, o livro de Dosman peca ao concentrar excessivamente boa parte das teses do pensamento econômico latino-americano sob a responsabilidade de quem parece ter sido mais seu avalista do que propriamente seu criador. Mesmo algumas ideias que Prebisch traz à fundação da Cepal não são exatamente originais, mas carregadas de uma dívida intelectual grande com alguns de seus pares, como Alejandro Bunge. Nesse sentido, o enfoque predominante na biografia pessoal e política, dado por Dosman, gera uma visão equivocada no tocante à intelectual. Tal confusão, diga-se a tempo, não pode ser atribuída ao próprio Raúl Prebisch, o qual efetuou uma separação bastante definida dessas três esferas biográficas em sua vida. De toda forma, o saldo é da obra é positivo.

Raúl Prebisch enfrentava uma situação bastante particular, em comparação aos demais membros fundadores, à época da constituição da Cepal. Por um lado, já era um economista intelectualmente estabelecido, tanto prático (fora presidente do Banco Central da República Argentina nos anos 1930) quanto acadêmico (passou a lecionar na UBA desde sua saída do BCRA em meados dos anos 1930), além de gozar de certo prestígio externo. Exercia, assim, reconhecida ascendência sobre os demais membros da Cepal, o que lhe rendeu a liderança política e ideológica da instituição por décadas.

Por outro lado, o fato de estar política e ideologicamente consolidado e ter participado efetivamente dos governos argentinos entre 1930 e 1940 lhe conferia o ônus de não ter trânsito no governo, que, dada a lógica política do peronismo, considerava-o um inimigo. De pouco adiantaria a postura “tecnicista” de Prebisch, que, ao contrário do instinto feudal bastante disseminado no funcionalismo público latino-americano, preferia remontar a algo mais próximo de um burocrata do tipo weberiano, avaliando seu desempenho a partir dos resultados no âmbito institucional – criação e consolidação do BCRA, consolidação de um departamento de estatística do governo etc. –, e não da constituição de uma rede social de intelectuais latino-americanos preocupados com uma série de temas comuns que norteariam a constituição da primeira fase ideológica da Cepal. Daí, segundo Dosman, o interesse dos EUA (por intermédio da CIA), em Prebisch, o que renderia boa parte de seu discurso proativo na promoção do ciclo autoritário dos anos 1960-1970 e arremessaria a América Latina em mais duas décadas de atraso.

A conclusão imperialista sobre Prebisch seria que, mais do que a formação de um pensamento desenvolvimentista autônomo, sua disseminação pelo continente era completamente inconveniente aos interesses ianques. Isso resultaria não apenas em sua perseguição política, mas em um progressivo processo de afastamento infligido pela burocracia das Nações Unidas e dos órgãos latino-americanos – então controlados por militares leais a Washington – ao economista argentino, o qual se tornaria o “intelectual solitário” visto por Dosman, coberto de dúvidas sobre a solidez de seu legado de ideias.

O renascimento do pensamento desenvolvimentista na América Latina, visto desde o começo do novo século, demanda não apenas o conhecimento da vida de Raúl Prebisch, mas também a releitura de sua obra, assim como do restante da primeira fase da Cepal, para a promoção de caminhos não só amplos, mas autônomos. Nesse sentido, o livro de Dosman vem em boa hora.
 

Luiz Eduardo Simões de Souza é doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP) e professor adjunto na Universidade Federal de Alagoas (Ufal)