Estante

Vivemos num tempo em que uma sucessão de acontecimentos traz à mente a lembrança da CIA. Quando, por exemplo, “acidentou-se”, o avião que conduzia o ministro Teori Zavaski, publiquei um comentário no Facebook dizendo que teríamos de esperar 50 anos até que as causas do acidente fossem reveladas. Isto é, quando pela lei norte-americana fossem abertos os arquivos da CIA deste período. Mas não foi necessário tanto... Poucos meses se passaram até que o próprio advogado filho do ministro declarasse com toda clareza: a família não acredita em “acidente”, meu pai foi assassinado! Claro que os detalhes somente saberemos daqui a décadas.

Fatos que se seguiram me fizeram relembrar de um livro, aliás, um livrão, em torno de 650 páginas, já velho conhecido mas que merecia uma releitura. Reli e aqui vou fazer um resumo. Trata-se de Dentro da Companhia: Diário da CIA, de Philip Agee.

Agee foi um jovem norte-americano que, por livre vontade, quis ser e se tornou agente da CIA, a Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos. Atuou como tal por 12 anos, entre 1957 e 1969. E conta nesse livro, publicado no mundo inteiro em 1975, tudo o que vivenciou, com nome, sobrenome – ou codinome, nome de guerra – de cada agente, chefe, agentes recrutados nos diversos países, até ministros, deputados, chefes de governo que em seu período fizeram parte da folha de pagamentos da CIA ou recebiam variadas propinas e/ou favores. O livro inclui em Apêndices centenas de nomes, codinome ou criptônimo, as siglas das organizações bem como um organograma da companhia. O livro teve duas edições no Brasil por volta de 1975/76, uma da Editora Civilização Brasileira que detinha os direitos, outra do Círculo do Livro. Em sebos ainda se encontra exemplares deles. Mas, que está fazendo falta uma edição atualizada, está!

Recrutamento

Escrito sob a forma de diário, o livro se inicia em abril de 1956, quando Philip Agee estudante na universidade, recebe a visita de um agente da CIA que o convida a ingressar na instituição. Era comum empresas enviarem representantes às escolas para escolher estudantes, mas para Philip a CIA foi uma surpresa. Depois se lembrou de uma velha amiga da família, pessoa importante na instituição, que teria indicado seu nome. Ainda assim seguiu os estudos de Direito, mas logo teve complicações, entre elas o serviço militar, ao qual teria de se dedicar por dois anos. Através da CIA... tudo se contornava.

Decidiu que era uma forma de servir a seu país e ter uma profissão, e assim, em abril de 1957, teve sua primeira entrevista em Washington. Seguiram-se seis meses em que a Companhia vasculhou sua vida. Se fumava, usava  drogas, saúde, os amigos, conhecidos, namoradas, tudo foi pesquisado em detalhes. Convocado, passou por uma batelada de exames, testes de todos os tipos, inclusive o polígrafo – o detector de mentiras. Semanas de expectativa e tensão até ser admitido para estudar. A questão do serviço militar foi resolvida através de um esquema especial mantido pela própria CIA na Aeronáutica, do qual ele sairia como oficial. E então começou sua vida sigilosa.

Treinamento

O treinamento foi o mais detalhado que se possa imaginar. A começar pelas aulas sobre comunismo – quer dizer, anticomunismo – e a doutrinação em torno do sonho americano. Tudo se ensina, especialmente a doutrinação, uma verdadeira lavagem cerebral em cada futuro agente. E os treinamentos físicos e técnicos das mais variadas especialidades. Todos saem de lá com elevada preparação física, e cursos de comunicações, implantação de fones de escuta, abertura de correspondência sem deixar marcas, escrita invisível, criptografia, bombas, tiro, explosivos, além de guerra psicológica adversa, escrever, criar notícias falsas (hoje as fakenews), manter contatos sigilosos, adotar nomes fictícios, abordar possíveis agentes em cada país onde atuar. Armas valem todas: desde as de fogo, aos venenos, à corrupção, havendo muita verba para comprar agentes, o meio mais eficiente nos países pobres; mulheres para seduzir; espionagem e contraespionagem, enfim tudo o que se possa imaginar em busca da informação e depois da ação ilegal.

A estrutura da CIA é revelada, a começar pelo modo como eles a chamam internamente: a companhia. Foi criada em 1947, após os EUA assumirem o papel de potência imperialista hegemônica no mundo, a partir de elementos do Exército e do FBI, que atua no interior do país, enquanto a CIA no mundo inteiro. A estrutura é imensa, com chefias e subchefias para cada divisão que se distribui pelos continentes, além das técnicas e das especiais, da contraespionagem etc. E as competências de cada nível de operação: as mais simples são decididas pelos escritórios locais; as de nível mais elevado exigem aprovação da direção central; até as de topo que demandam aprovação do Conselho de Segurança Nacional, ou do próprio presidente dos EUA.

Diferente da simples busca de informações, são a operações, sejam elas psicológicas ou paramilitares, cada uma com sua sigla código, naturalmente. Diz o autor que “as operações de ação, pelo contrário, sempre trazem um resultado visível. Elas, porém, jamais devem ser atribuídas à CIA, ou ao governo dos Estados Unidos, e sim a outras pessoas ou organizações...” (grifo nosso, 68)”. As operação são fundamentais, como veremos.

A estrutura se espalha pelo mundo inteiro. Onde há uma embaixada norte-americana, há agentes da CIA, há um escritório, ou uma base local, o mesmo se dando nos consulados. Aí se situam os principais agentes, a chefia, com respaldo diplomático. Outros agentes são cidadãos norte-americanos residentes nos países onde atuam, militares aposentados, empresários etc. E os agentes recrutados no local. Aí se encontra de tudo: desde pessoas ideologicamente anticomunistas, como aqueles que gostam de dinheiro, ou precisam dele, e se submetem à chantagem. Entram políticos, chefes de governo, ministros, deputados, oficiais das forças armadas e da polícia, membros do poder Judiciário, líderes sindicais e estudantis. Todo tipo de gente é recrutada e sempre que possível são encaminhados para treinamento em escolas sob seu controle.

A CIA mantém relações especiais com o MI-6 (serviço secreto inglês) e também com países como Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Os demais são objeto de espionagem, mesmo os “amigos”. E vale tudo, pois é preciso saber o que se passa no dia a dia de cada um em seus mínimos detalhes.

Equador

Philip Agee foi designado para da Divisão Oeste, a que cuida dos países americanos. E depois de algum tempo com treinamento específico, lendo e fazendo relatórios, recebeu sua primeira missão: a base do Equador. Antes se inteira de tudo o que se passa no país: governo, partidos, oposições, organizações sociais, sindicais, estudantis, relações externas etc. A missão cubana é alvo especial, já que “o principal objetivo da CIA é promover uma ruptura das relações diplomáticas por meio de operações de ação política e de propaganda (p. 112).

O rompimento das relações diplomáticas com Cuba é o principal objetivo da CIA para a América Latina: destruir Cuba seria o melhor, ou pelo menos o regime político lá implantado. E tudo fazem para isso: desde a invasão armada da Baía dos Porcos que resulta num retumbante fracasso, pois enfrenta a resistência em armas do povo cubano. Outro fracasso é a dificuldade em implantar uma base da CIA dentro de Cuba, bem como as tentativas de assassinar seu líder maior, Fidel Castro. A CIA atua junto aos exilados em Miami, consegue levar até a Ilha alguns viajantes provisórios, e até mantém dois agentes através da Embaixada do Uruguai. Mas não obtém nenhum resultado efetivo.

O Equador, onde o Agee chega em dezembro de 1960, é presidido pelo populista Velasco, que mantinha um governo amplo, inclusive com um ministro do Exterior de esquerda, simpatizante da revolução cubana, Araújo. Nos primeiros dias após a chegada de Agee, ocorrem muitas manifestações de massa contra os Estados Unidos, com a depredação da embaixada e consulados e a defesa de Cuba, da Rússia e do Equador. Mas de outro lado a base da CIA tem infiltração no governo, através do agente Acosta, sobrinho do presidente, e ocupante de alto cargo, mais tarde ministro da Fazenda, além de vários agentes na polícia, no Exército, nos ministérios das Relações Exteriores, nos correios.

As ações são as mais variadas possíveis: infiltrar-se no movimento sindical, nas organizações estudantis, nos partidos políticos, na imprensa, nas instituições patronais e principalmente no governo e na polícia. Na Embaixada de Cuba conseguem um motorista como agente. Além disso, montam uma ampla parafernália que fotografa todos os que entram e saem da embaixada; escutas nos mais diversos lugares, inclusive no palácio governamental; recebimento de todas as malas postais oriundas de Cuba e dos países socialistas cujas cartas são abertas, fotografadas e depois repostas com perfeição. Quando sabem – e para isso contam com bases no mundo inteiro – que virá uma missão de país do Leste, como uma comercial da Tchecoslováquia, se antecipam, conseguem saber onde se instalará e implantam pontos de escuta. O mesmo fazem com as sedes do Partido Comunista (que é legal) e outras organizações de esquerda.

Mas a principal ação, nesse período, é a de propaganda. De tudo fazem para desmoralizar o governo Velasco, minar seus ministros progressistas e isolar Cuba. Possuem agentes em todos os grandes jornais. Usam a técnica de plantar notícia em outro país: a base da Colômbia planta uma notícia de que foi descoberta uma grande quantidade de armas cubanas na Venezuela (país que ainda não era chavista); a polícia vai ao local e “encontra” as armas implantadas: prato feito, grande campanha contra Cuba por muitos anos, e o rompimento das relações diplomáticas de vários países com Cuba. Assim os Estados Unidos vão obtendo o isolamento da Ilha, já bloqueada economicamente.

No Equador, entre os muitos êxitos da base da CIA está o afastamento do ministro Araújo, depois a deposição do próprio presidente Velasco, seguida da de seu vice Arosemena e o rompimento das relações diplomáticas com Cuba. Num dado momento, resume o autor:

A propaganda contra Araujo, Cuba e o comunismo em geral, foram, sem sombra de dúvida, o mais relevante programa da base desde que aqui cheguei há seis meses. ... O projeto ECATOR (nome código) teve muito a ver com todas essas atividades, custa cerca de 50 mil dólares por ano, e em um lugar como Quito mil dólares por semana já compra muita coisa. A sensação que tenho não é a de que estamos manobrando o país, e sim ajudando a modelar os acontecimentos na direção e sob a forma que queremos. (p.182)

O dinheiro gasto é quase ilimitado. São muitos os que fazem parte da folha mensal de pagamento a CIA no Equador e no mundo, jornalistas e governantes à mão cheia. Derrubado Velasco e não conseguindo impedir a posse do vice Arosemena, mais à esquerda, novas tarefas se colocam para a CIA. Descreve Philip Agee:

Nossas principais tarefas agora, nos próximos meses, serão a renovação da campanha contra Cuba, através da Frente de Defesa Nacional (biombo político criado pela CIA), e outras operações, enquanto manipularemos cuidadosamente a penetração da extrema-esquerda no governo de Arosemena – e seus preparativos para uma ação armada. Ainda que tanto o segundo como o terceiro integrantes da linha de sucessão de Arosemena constem de nossa lista de pagamentos, seria difícil argumentar que a atual situação da segurança é um desenvolvimento do governo Velasco.(p. 218)

A CIA obtém muitos êxitos no Equador através das bases de Quito e de Guayaquil. Infiltra-se no Partido Comunista e demais organizações de esquerda, na guerrilha em preparação que é quase toda aprisionada. Coloca até um agente numa guerrilha peruana em formação, o que valerá o assassinato de muitos guerrilheiros anos depois. Tudo isso, em grande parte, devido à ação de Philip Agee e do grande número de agentes no país.

Depois vem o êxito: a derrubada do governo Arosemena, a instalação de uma junta militar, o rompimento de relações diplomáticas com Cuba. Agee é transferido para o Uruguai, mas antes disso tem um novo e longo preparo em Washington. E aqui se faz necessário um parêntese.

A Aliança para o Progresso

É necessário informar aos leitores o que foi a Aliança para o Progresso, programa elaborado pelo presidente Kennedy em 1961 a partir da Revolução Cubana. Estava claro para aos Estados Unidos, que sempre teve bons economistas e analistas políticos, que os graves problemas econômicos e sociais do continente alimentavam as ideias revolucionárias. Assim, era preciso eliminar a base para que a revolução não prosperasse. A experiência norte-americana da reforma agrária implantada ainda no tempo de Lincoln, mais de um século antes, foi a base da prosperidade do país do norte. Assim, a reforma agrária na América Latina e melhor distribuição de renda, ao lado de um pequeno desenvolvimento industrial controlado, eliminariam a miséria extrema e, portanto, a base para futuras guerrilhas.

Todos os agentes da CIA como Philip Agee acreditavam piamente nisso. Desenvolveriam toda a América, eliminariam o comunismo, com sua variação latina, o castrismo. Assim, por exemplo, os agentes da CIA procuravam participar das lutas dos camponeses pobres e dos índios equatorianos, apoiando muitas de suas reivindicações e disputando a liderança com a esquerda. Mas por cima, um discurso grandiloquente que pregava até a democracia (desde que controlada), enredavam os governantes latinos; estes sempre ficavam à espera de alguns milhões de dólares que pudessem amealhar para seus bolsos. Era (ou é?) o jogo. Mas todos os movimentos populares na maioria das vezes espontâneos, ou mesmo de políticos liberais (numa época em que o liberalismo ainda tinha um quê de progressista), seja pela reforma agrária ou pela democracia, eram severamente reprimidos.

O exemplo mais significativo se deu na República Dominicana. Em 1962, depois de décadas da ditadura sanguinária de Trujilo, o liberal Bosch é eleito presidente. Com sete meses de governo é derrubado pelas oligarquias; quando mais tarde tenta voltar ao poder, enfrenta uma invasão liderada pelos Estados Unidos. Diz Agee:

Não entendo bem esta invasão da República Dominicana. Bosch foi eleito em 1962 graças aos votos dos camponeses organizados por Sacha Voman na Costa Rica... para onde mandamos jovens políticos liberais para treinamento. Bosch segue a mesma linha de Muñoz Marin, Betancourt e Haya de la Torre. Apoia as reformas que permitirão redistribuição da renda e a reintegração1 (p.426).

E prossegue:

Agora que os constitucionalistas têm os meios para devolver o poder a Bosch, nós deslocamos nossas forças para afastá-lo. Ninguém vai acreditar na história de Johnson de outra revolução estilo cubano está sendo fomentada. Será preciso argumento muito mais convincente do que esse – mas, por qualquer razão, Washington não quer que Bosch volte. Os uruguaios também não estão entendendo (nesta época, 1965, Agee já se encontrava no Uruguai). E já começam as manifestações de rua contra os Estados Unidos. É muito deprimente. AVBUZZ-1 (codinome do principal agente da CIA na imprensa uruguaia) vai parecer ridículo tentando encaixar propaganda. (p. 427)

Ao lado disso os problemas pessoais de Philip Agee vão se agravando, e sua cabeça começa a entrar em parafuso. As relações com a esposa: “não temos nenhum interesse em comum – a não ser quanto às crianças”. E tem mais, continua ele: “A invasão da República Dominicana fez com que eu começasse a pensar sobre o que estamos realmente fazendo aqui na América Latina” (p. 446). A compreensão de Agee vai se transformando, evoluindo. Mas sigamos os fatos.

Outro exemplo das comunicações normais entre as bases da CIA da América Latina (lembrem-se que ainda não havia o computador...) foi uma tentativa de guerrilha na região de Santo Domingo no Equador, que foi debelada antes de começar com muitas prisões, torturas etc. Interessante o que diz Agee de informações provenientes do Brasil:

A base do Rio de Janeiro... elaborando um artigo sobre os antecedentes de uma das moças, ligada ao comunismo, uma brasileira chamada Abgail Pereira. A reportagem foi divulgada por meio do correspondente do Rio da agencia Orbe Latino-americano (Serviço de notícias especializado, atuando em quase toda a América Latina. Financiado e controlado pela CIA através da base de Santiago do Chile. Apêndice 1, p. 607).

O artigo indica que o pai da moça é um deputado federal, médico particular de Luís Carlos Prestes, reconhecido líder do partido Comunista Brasileiro... [Acrescento: o pai era Adão Pereira Nunes, médico, comunista e parlamentar. Morou vários anos em Ipanema, num apartamento onde fui algumas vezes. Em uma delas para assistir show em petit comitê de Mercedes Sosa, por volta de 1965]. Assim agia a CIA, altamente interligada desde cedo, mesmo antes dos computadores...

Uruguai

Chega o tempo de Phillip Agee ser removido, velha reivindicação sua. O destino, Montevidéu. Antes, uma nova temporada com mais treinamento em Washington, para onde parte em 10 de dezembro de 1963. Havia também problemas pessoais, nascimento dos filhos, crise com a esposa que não se adaptava àquela vida em que ele dedicada 99% do tempo à CIA, vontade de rever amigos e parentes, dúvidas que começavam a germinar em sua cabeça.

Na capital norte-americana, Agee atualiza-se sobre os problemas do continente. Suas maiores conversas são com o amigo Noland 2. Claro, nessa época, depois da crise dos mísseis em Cuba, o Brasil governado por João Goulart passou a ser a maior preocupação do governo norte-americano: derrubar João Goulart era a principal meta da CIA!

O Brasil era a bola da vez. Entre outras organizações fantoches foram criados o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) e a Ação Democrática Popular (Adep). A CIA sempre gostou muito do adjetivo democrático... No Congresso instalou-se uma CPI para apurar a ação antipatriótica. Porém, esclarece Noland, segundo Agee, dos nove membros da CPI cinco foram financiados por essas instituições – ou seja, indiretamente pela CIA; e, além disso, os grandes bancos estrangeiros se recusaram a informar a fonte dos recursos usados nos financiamentos. E a CPI deu com os burros n’água (p.325). Tempos mais tarde o governo Jango decretou o fechamento das entidades criminosas.

Philip Agee chega a Montevidéu em março de 1964, e considera a cidade “encantadora”. Note-se que o Uruguai, ao lado do Chile, Brasil e do México, são os únicos países latino-americanos que ainda mantinham relações diplomáticas com Cuba. O Brasil, logo mais com o golpe militar, romperá (o que mais tarde ocorre também com o Chile). E o Uruguai, considerado a Suíça da América Latina, mais tarde também será submetido aos desígnios da CIA. Apenas o México nunca rompeu relações diplomáticas com Cuba!

É importante assinalar que Agee sempre informa as ações mais importantes da CIA em toda a América. Acontecimento pouco conhecido hoje, diz respeito ao governo progressista de Cheddi Jagan, na Guiana Inglesa, derrubado em fins de 1964. Agee informa: “A base de Georgetown na Guiana Inglesa, conseguiu uma vitória em seus esforços para derrubar o primeiro-ministro esquerdista e marxista declarado Cheddi Jagan” (p.413).

Voltemos ao Uruguai. País democrático, com instituições funcionando e uma realidade muito diferente do Equador conforme observa o agente da CIA. As condições econômicas eram bem melhores; assim o dinheiro funcionava pouco para chantagear futuros agentes. Além disso, pela condição de país democrático, concentrara refugiados de várias nações – argentinos, paraguaios, bolivianos, até equatorianos, e depois muitos brasileiros. Também possuía embaixadas de Cuba, da União Soviética e de outros países socialistas (Até a embaixada da República Árabe Unida – RAU, união do Egito com a Síria era especialmente espionada). Assim, a ação da CIA era muito ampla e complexa, ao ponto às vezes de abandonarem alguma ação por causa de outra. Agee traça uma radiografia completa do país naquelas condições e tempo. Os partidos, as organizações de esquerda – onde o PC era legal e influente –, o amplo e forte movimento sindical e estudantil, tudo é esquadrinhado. Conseguem infiltrar alguns agentes e contar com sólidos contatos na grande imprensa, além dos múltiplos esquemas de fotografia das embaixadas, instalação de microfones, corrupção nos correios, além, naturalmente, do bom pagamento a agentes policiais e militares e no Ministério de Relações Exteriores. Entre os agentes remunerados da CIA estava até Benito Nardone, que foi presidente do Uruguai entre 1960 e 1961.

Entre as muitas vitórias que a CIA comemorou no Uruguai, estava o golpe militar no Brasil. Diz Agee:

Nossa campanha contra ele (Goulart) seguiu as mesmas linhas efetuadas contra a infiltração comunista nos governos de Velasco e Arosemena dois três ou anos atrás, no Equador. Segundo Holman, a base do Rio e suas outras dependências estavam financiando as manifestações urbanas em massa contra o governo Goulart para provar que os velhos temas como Deus, pátria, família e liberdade sempre prevalecem. A queda de Goulart se deve, indubitavelmente, em grande parte devido à operação eleitoral que retrocede ao ano de 1962. (Quando a CIA financiou um grande número de candidatos) (p.366/7)

Com a chegada dos exilados brasileiros a CIA tratou de monitorá-los. E entre suas campanhas vitoriosas deu-se o confinamento do presidente João Goulart e a expulsão do ex-governador Leonel Brizola do Uruguai. E para facilitar seu trabalho, a base do Rio de Janeiro colaborava muito. Garantiu a ida de um adido militar, um coronel colaborador e mais importante ainda, o diplomata Manoel Pio Coreia, ativo colaborador da CIA. [No caso dos adidos militares, lembremos que mais tarde foi enviado pra lá o famigerado Brilhante Ustra, o “herói” do Bolsonaro, já depois da redemocratização, que foi identificado como um dos seus torturadores no DOI-Codi paulista pela deputada Bete Mendes e destituído da função no governo Sarney].

Mas no front interno uruguaio a CIA sofreu muitas derrotas. O movimento sindical aguerrido, e com a deterioração a situação econômica, fazia sucessivas e vitoriosas greves. A esquerda se fortalece e a democracia se mantém, apesar de arranhões, bem como as relações diplomáticas com Cuba e demais países socialistas eram mantidas.

Muitas outras tarefas relativas aos países vizinhos eram realizadas, como o acompanhamento dos exilados, infiltração entre eles etc. Destaca-se, por mais de uma vez, o grande esforço de reunir pesos chilenos para financiar as campanhas contra Salvador Allende. O dinheiro não podia seguir em dólares, mas era preciso transformá-lo em pesos chilenos para não denunciar a origem e facilitar o trabalho local. E como eram milhões, recorriam às casas de câmbio e aos bancos de vários países, juntavam as quantias e mandavam pelas malas diplomáticas. A CIA foi vitoriosa contra Allende várias vezes [1952, 1958 e 1964, mas derrotada em 1970].

No Uruguai a CIA funcionava [e certamente funciona, como no mundo todo], como um governo paralelo. Philip Agee dá muitos exemplos disso. Também considera que os Estados Unidos financiam as elites corruptas sem nenhuma reforma social que minore as condições de vida do povo como previa a Aliança para o Progresso. Se continuamos combatendo as esquerdas como vimos fazendo, diz ele,“isso só serve para dar mais força a este miserável, deficiente e corrupto governo uruguaio. Se dermos força a este e a outros governos, igualmente ‘de panelinhas’, só porque são anticomunistas, então... estaremos reduzidos a promover um tipo de injustiça para evitar outro.” (p. 467).

Outro exemplo significativo. O serviço secreto da CIA era muito mais eficiente do que o uruguaio, até porque contava também com as informações do próprio serviço uruguaio. Mas mantinha a autonomia de seu serviço e agentes. Assim conseguiu algumas infiltrações nas organizações de esquerda que cresciam no Uruguai. Usavam técnicas modernas. Numa daquelas crises graves ainda com democracia e com o início da atuação dos Tupamaros, esquerda muito ativa, greve geral, mobilização estudantil e camponesa, estado de sítio vigorando, e a polícia uruguaia meio de cabeça tonta, sem saber por onde começar, Philip Agee fornece o endereço de um dos contatos, um líder de esquerda, Bonaudi. Dia seguinte, por outras razões ele e seu superior vão visitar o chefe de polícia de Montevidéu. Da sala onde se encontram eles ouvem gritos, gemidos, que aumentam quando um rádio é desligado. Saem dali com a certeza de que era tortura, pois a sala de tortura era vizinha à qual se encontravam. Dia seguinte pergunta ao chefe de polícia e este confirma, dizendo que foi ordem superior: foi o Bonaudi a vítima, mas que depois de três dias de bárbaras torturas, ele nada revelou. Agee fica chocado e decide não fornecer mais nenhuma informação à polícia uruguaia.

A CIA continua obtendo vitórias no Uruguai: a expulsão de russos, tchecos, até o rompimento de relações diplomáticas (p.480). Mais tarde a vitória completa: rompimento das relações com Cuba e o golpe que acaba com a farsa democrática e implanta uma ditatura militar na antiga Suíça latino-americana.

Neste período Agee já está decidido a sair da CIA. Reconhece que aquela não era a profissão de sua escolha. Chega a imaginar um tipo de carta que faria pedindo demissão e transcreve o esboço que só reproduz no livro. Diz em alguns trechos:

Entrei para a “companhia” porque achei que estava fazendo um trabalho de proteção da segurança de meu país ao lutar contra o comunismo e a expansão soviética, enquanto, ao mesmo tempo, ajudaria outros países a manter a sua liberdade. Seis anos passados na América Latina me ensinaram que as injustiças impostas pelas minorias governantes ao povo não poderão ser facilmente extintas por movimentos reformistas como os da Aliança para o Progresso. A classe dominante jamais abrirá mão, de boa vontade, de seus privilégios especiais e de seu conforto. (...)

O Uruguai constitui uma prova indiscutível de que as reformas convencionais não resolvem e, para mim, torna-se bem claro que as únicas soluções verdadeiras são aquelas defendidas pelos comunistas e outros da extrema-esquerda. (p. 512/13)

O México

De retorno aos Estados Unidos e decidido a deixar a CIA, Philip não sabe ainda quando nem como fazer. Resolve primeiro seus problemas pessoais, entre os quais a separação com a esposa, que fica com a guarda dos filhos. Muitas conversas com os velhos amigos e conhecidos da CIA findam convencendo-o a uma nova missão (claro que, até então, ninguém sabia de sua pretensão de deixar a Companhia). Em 1968 haverá Olimpíadas no México, e ele irá como subchefe da delegação norte-americana. E como sempre gostou de esporte, finda aceitando a missão e iniciando os novos treinos.

Neste ínterim, Philip retorna ao Uruguai para uma missão especial em março e abril de 1967: parte da enorme cobertura de segurança de uma viagem do então presidente Johnson para uma conferência latino-americana em Punta del Este. A conferência foi como o previsto, tudo em ordem. Resultados? Os esperados. Diz Agee:

E quanto aos resultados da conferência? Bem, eles finalmente afastaram os conceitos originais da Aliança para o Progresso sobre a reforma agrária, a redistribuição de renda e a integração social e econômica. Nada de novo, já que nenhum dos governos parecia ter levado muito a sério as iniciativas relativas a esses assuntos. [E o Império do Norte será que levou? Pergunto.] (p. 550).

Philip Agee vai para o México em junho de 1967, depois de mais um longo processo de treinamento, onde o mais importante é dado pela seção soviética, já que um dos principais objetivos nas Olimpíadas é tentar recrutar agentes daquele país. E naturalmente estuda tudo sobre o México, sua história, as instituições, os partidos, a esquerda – na qual o PC também é legal –, além das particularidades por ser um país vizinho, de ser único latino-americano que mantém relações diplomáticas com Cuba, enfim, por tudo isso, é o país que possui a maior base da CIA na América Latina. E os agentes, tanto na embaixada, em outros postos diversos e os recrutados no país, são inúmeros. O próprio presidente do México, Gustavo Diaz Ordaz “trabalha em íntima relação com a base desde que se tornou ministro de Estado da administração anterior, de Adolfo López Mateos” 3(p.534).

Ao tempo em que desenvolve suas convicções de que deverá sair da CIA, começa a pensar como e de que viver. No México consegue fazer alguns contatos, mas vai percebendo que não será fácil. Será perseguido e seus filhos nos Estados Unidos... Ele já pensa no livro, escreve um esboço que deixa com editores em Nova York. Mas apesar de todas as garantias teme que a informação transpire e numa próxima viagem aos EUA reflete: quantos desfiladeiros não podem provocar um “acidente”. Escreve: “As mortes em Kent State e Jackson State mostram de maneira bem clara que mais cedo ou mais tarde nossos métodos contrarrevolucionários também seriam empregados dento do nosso próprio país.” (p. 571). E a guerra do Vietnam, o aumento os bombardeios norte-americanos, é outro assunto que o atormenta e leva finalmente a uma decisão definitiva. Sua compreensão política do mundo e da história vai se transformando. Cai a ficha! As classes dominantes sempre dão um pouquinho, para conservar o essencial. Faz um balanço do que aprendeu:

Essas medidas constituem os quatro mais importantes programas de contrarrevolução através do qual o governo dos Estados Unidos fortalece as minorias governantes da América Latina: operações da CIA, missões militares de treinamento e assistência, programas de segurança pública da AID para auxiliar a polícia e operações de sindicatos através da ORIT, dos Secretariados de Comércio Internacional e do AIFLD 4 (p. 574)

Decidido a abandonar a Companhia e contar tudo o que viu e viveu, inclusive com o nome ou codinome de todos os implicados nos inomináveis crimes, consegue estabelecer alguns contatos e garantir alguns “quebra-galhos” como ganha-pão provisórios, enquanto escreve o livro. O pedido de saída é cordial. Alega problemas pessoais, a recusa da esposa em deixar os filhos virem passar uns dias com ele no México (por orientação da CIA, fica sabendo depois, tentando forçá-lo a voltar aos Estados Unidos). Acabe indo para a França onde espera completar as pesquisas e achar uma editora. Faz uma viagem a Cuba, onde obtém apoio e muitas informações, mas faltam ainda coisas básicas como notícias de jornais que situem os acontecimentos no tempo certo. Vai para Londres onde obtém as últimas informações indispensáveis, mas percebe que a CIA o está cercando, o espionou em Paris durante todo tempo em que lá esteve. Em 1975 consegue enfim publicar seu livro no mundo inteiro e passa a viver em Cuba, país que tanto odiou e perseguiu, mas único lugar onde consegue viver em liberdade. Seus filhos, que tanto amava, salvo engano, nunca mais os viu...

E o Brasil de hoje?

Aqui encerro a resenha do livro de Philip Agee, Dentro da Companhia – Diário da CIA. E aproveito para fazer algumas especulações sobre os tempos atuais. Antes, porém uma última citação de uma conclusão da CIA pós-golpe militar de 1964, segundo Agee: ...Não se deve permitir, nunca mais, que o Brasil se incline para a esquerda, pois aí comunistas e outros constituem uma ameaça de domínio ou de, pelo menos, tornarem-se muito influentes. (p. 369)

O melhor, para desencanto da CIA, é que o Brasil se inclinou para a esquerda elegendo um metalúrgico (coisa rara neste mundo latino-americano) para a Presidência em 2002. E assistimos uma virada no continente para o progresso. Vários são os motivos, mas nesta onda seguiu-se o Uruguai, o Paraguai, a Argentina, o Chile, a Bolívia, o Equador, a Venezuela, além de Cuba e da Nicarágua que fizeram suas revoluções. Todos esses governos progressistas, de uma forma ou de outra, mais cedo ou mais tarde, foram derrubados, à exceção dos que fizeram a revolução e da Venezuela. Teria a CIA agido como articuladora desses movimentos? Alguns ingênuos devem se questionar. E agora eles possuem as novas técnicas da guerra digital na qual se especializaram.

Na América Latina a mais visível e incansável tentativa dos EUA de destruir a ferro e fogo está na Venezuela, detentora de rico manancial petrolífero. Mas no caso do Brasil, algumas poucas notícias que alcançam a mídia mostram que a CIA está mais ativa do que nunca. Afinal de contas a descoberta do petróleo do pré-sal e o desenvolvimento da indústria da construção civil brasileiras aguçaram a cobiça das multinacionais o que tornou necessária a ação da CIA. Assim temos aquelas manifestações de 2013, com as organizações que a insuflaram, financiadas por quem? E depois?

As notícias que aparecem são poucas, mas reveladoras. A começar pela informação do Wikileaks de que Michel Temer era um informante da CIA. Isso pode ser encontrado numa simples pesquisa na internet. Depois temos o vazamento da informação de que o chefe da CIA no Brasil, Duyane Norman, (estes nomes sempre são mantido no mais absoluto sigilo), ainda no governo Temer, ao despedir-se do país de volta ao seu, fez uma visita “de cortesia” ao chefe do serviço secreto brasileiro, no caso o general Sergio Etchegoyen, do Gabinete de Segurança Institucional, na segunda-feira, dia 9 de junho de 2017. Foi um lapso na divulgação da agenda, que a imprensa não perdoou. Embora nem a CIA nem a embaixada tivessem reconhecido o fato.

Mas os fatos mais importantes dizem respeito à “Monarquia de Curitiba”, o grupo monárquico indevidamente chamado de “República de Curitiba”. Este grupo mudou a história do Brasil e, em parte, da América Latina. E quantos deles não fizeram cursos de treinamento nos Estados Unidos? Cursos da CIA, certamente que não, de outros órgãos, mas a CIA por trás, dá as cartas, como vimos. Não digo que todos os membros da monarquia de Curitiba fazem parte da folha de pagamentos da CIA, nem mesmo que um só deles faça! Mas os indícios de que eles agiram desde sempre – e continuam a fazê-lo, inclusive em suas novas funções – o trabalho de interesse e por trás dos panos articulado pela CIA, sobre isso não pode haver dúvida. Enumeremos dois ou três fatos:

A defesa de Lula fez várias inquirições sobre suspeitas de ligações espúrias entre o juiz que dava sentenças com base em “suas convicções” e não em provas, e elas nunca foram apuradas nem respondidas.

O The Intercept revelou:

Conversas vazadas de procuradores do Ministério Público Federal revelam o funcionamento de uma colaboração secreta da operação Lava Jato com o Departamento de Justiça dos EUA, o DOJ, na sigla em inglês. Os diálogos, analisados em parceria com a Agência Pública, mostram que a equipe liderada pelo procurador Deltan Dallagnol fez de tudo para facilitar a investigação dos americanos – a tal ponto que pode ter violado tratados legais internacionais e a lei brasileira.

A Lava Jato é notória por sua estratégia midiática: raramente uma ação de busca e apreensão ou condução coercitiva foi realizada sem a presença das câmeras de tevê. Mas a equipe de Dallagnol fez de tudo para manter sua relação com procuradores americanos e agentes do FBI no escuro.

Quando se diz FBI, entenda-se CIA. A Companhia nunca age diretamente, mas sempre através de outros órgãos como o próprio FBI, o Departamento da Justiça, o Departamento de Estado (a diplomacia), o Exército norte-americano.

Tem mais. O economista e pesquisador norte-americano Mark Weisbrot em matérias divulgadas em fevereiro de 2020 é claro: Os Estados Unidos usaram a Lava Jato para atingir um “objetivo da política externa, que era se livrar de Lula e Dilma Rousseff e avançar um pouco mais no processo de ‘demolir’ a independência dos países latino-americanos que não estão alinhados com o governo norte-americano.” Ele não diz, mas quem sabe, sabe, o principal instrumento para isso é a CIA, que sempre age sigilosamente, secretamente. Nunca aparece, a não ser por descuido.

Para concluir, últimas lembranças. Não é preciso voltar ao caso de Teori Zavaski. Daqui a algumas décadas saberemos dos detalhes do “acidente”. E os fatos novos? Bem, os arquivos muitos cheios e inconvenientes precisam ser apagados. No caso do capitão Adriano, apesar de ter um colega capitão e amigo presidente da República era um arquivo repleto de informações comprometedoras. Foi reagir aos seus colegas PMs e levou chumbo. Mas e o Bebiano? Era um grande arquivo tão cheio quanto o outro, ninguém tem dúvidas; e que sabia da encomenda de sua morte, como vinha afirmando. O que ainda não se sabe e se deixou cartas revelando tudo, ou pelo menos parte do que sabia. A pandemia do coronavírus veio adiar o assunto.

Mas que tem ele a ver com a CIA, não é mais uma teoria da conspiração? Não sei de nada, nem estou afirmando nada. Afinal o ex-ministro Bebiano morreu de infarto agudo. O enterro foi muito rápido, causou estranheza, pior do que se estivesse infectado do coronavírus ou da peste negra. Autópsia? Para quê?, perguntou o general Mourão. Jango, o ex-presidente João Goulart, apesar de cardíaco, também morreu de morte súbita, suspeita! A CIA em seus laboratórios já criou muitas drogas, nenhuma que não possa provocar um infarto do miocárdio sem deixar pistas. Quem sabe, um dia saberemos?

Guardem-se os outros arquivos. Espalhem cópias para defender a vida.

Roberto R. Martins é fundador do PT, escritor e historiador, autor entre outros de Liberdade para os Brasileiros – Anistia ontem e hoje e de Segurança Nacional ([email protected])