Estante

Boaventura de Sousa Santos, doutor em Sociologia do Direito pela Universidade Yale, professor titular da Universidade de Coimbra, é certamente conhecido na atualidade como um dos principais, senão o principal, intelectuais da língua portuguesa na área de Ciências Humanas e Sociais. Boaventura tem revelado para o mundo uma imensa capacidade de aglutinação e, por meio dela, a igualmente inestimável necessidade do fomento, do encontro e do diálogo crítico e construtivo entre os “contra-hegemônicos”. Falando, teorizando e pesquisando o continente europeu, mas com pés fincados em países do Hemisfério Sul (e em especial no Brasil, onde realizou o trabalho de campo de sua tese de doutoramento em Yale, morando durante meio ano num barraco na favela do Jacarezinho em 1970), o seu propósito vem sendo o de minar, de forma gradual, mas coerente e consistente, o que ele mesmo designa como “razão indolente ou preguiçosa”. Com a afirmação de que “temos de reinventar as ciências sociais porque são um instrumento precioso; depois de trabalhá-las epistemologicamente, devemos fazer com que elas sejam parte da solução e não do problema” (p. 25), neste livro Boaventura constrói críticas ácidas e definitivas sobre pressupostos epistêmicos e teóricos que cristalizaram historicamente a produção dessas ciências. Renovar a Teoria Crítica é um excelente exemplar desse procedimento.

Apresentado no formato de três grandes conferências proferidas e comentadas pelo autor ao longo de sua passagem pela Argentina em 2005, a convite do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso), o livro condensa elaborações dispersas em muitas outras obras organizadas e/ou escritas previamente, em especial a coleção da qual constam os volumes Democratizar a Democracia: Caminhos da Democracia Participativa (2002), Produzir para Viver: Caminhos da Produção Não-Capitalista (2002), Reconhecer para Libertar: Os Caminhos do Cosmopolitismo Multicultural (2003), Semear Outras Soluções: Os Caminhos da Biodiversidade e dos Conhecimentos Rivais (2004), Trabalhar O Mundo: Os Caminhos do Novo Internacionalismo Operário (2004), culminando em outra obra igualmente densa e fundamental intitulada Conhecimento Prudente para Uma Vida Decente: Um Discurso sobre As Ciências Revisitado (2003).

Além do fôlego e do engajamento efetivo em tentativas de recolocar o cânone democrático, de repor a epistemologia das ciências sociais e de reinventar o capitalismo tardio – propostas tão ousadas quanto caras a um momento em que a capacidade de antecipar um “outro mundo possível” está fortemente minada e subentendida –, Boaventura vai tecendo, na primeira conferência, a trama de um arcabouço teórico-epistêmico que possa ser de fato alternativo ao paradigma racional ocidental.

Na segunda opta pela afirmação de uma “ecologia dos saberes” com vistas à emancipação do(s) conhecimento(s), repondo problemas teóricos viscerais: o do silenciamento das diversidades culturais, o do resgate das diferenças, subsumido pelas políticas hegemônicas. Revendo a já clássica mas muito mal compreendida relação entre objetividade e neutralidade nas ciência sociais, Boaventura toca numa ferida: nossa incapacidade em nos “isolar totalmente das conseqüências e da natureza do nosso saber” (p.57) visando à proposição de cinco grandes desafios: a elaboração de uma mais ampla concepção da opressão; o respeito à igualdade e o princípio da diferença; a dialética sutil entre legalidade e ilegalidade; a necessidade de recriar novas formas de insurgência e a premência de um novo internacionalismo.

Arguto no entendimento de que palavras não são só significantes e significados, mas verdadeiramente ações no mundo, o autor se permite jogar com elas, reescrever os temas e os campos mencionados, sendo possível por meio delas a ousadia de reinventar conceitos outros, novos, alternativos.

Partindo da idéia forte de que, no mundo atual, vivenciamos dissociação esquizofrênica entre a experiência e a expectativa e de que há um enorme desperdício da experiência, o intelectual português ainda acredita que é possível reconstruir a idéia de emancipação social justamente a partir de experiências bem-sucedidas em áreas como produção alternativa e democracia participativa, mas dessa vez em “alta intensidade”, que é o tema da última conferência.

Boaventura – uma subjetividade rebelde à procura de parceiros – apresenta um livro condensado de elaborações crucialmente caras aos leitores que votam confiança, como eu, em que seja possível a capacidade humana de criticamente reinventar o seu próprio lugar.

Marlise Matos é professora-adjunta e chefe do Departamento de Ciência Política da UFMG