Estante

Repressão e ResistênciaA censura a livros durante a ditadura iniciada em 1964 no Brasil finalmente ganha uma obra dedicada exclusivamente ao tema. Se já havia obras voltadas ao estudo da censura em algumas áreas específicas, como a imprensa, a TV, o cinema, o teatro e a música, e outras que a analisaram em termos mais gerais, faltava um trabalho cujo foco fosse exatamente esse.

O mérito de suprir essa lacuna coube à pesquisadora Sandra Reimão, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) e do Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicações e Artes, ambos da Universidade de São Paulo, que acaba de lançar Repressão e Resistência: Censura a Livros na Ditadura Militar (Edusp/Fapesp, 184 págs.).

Tendo como objeto a atuação do Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP) – setor do Departamento de Censura de Diversões Públicas (DCDP), órgão do governo federal que a partir de 1970 passou a ser responsável pela censura a livros –, a obra de Sandra Reimão debruça-se principalmente sobre a censura oficial a livros de ficção.

Antes disso, porém, a autora fornece ao leitor um quadro da censura no período que vai do golpe de 1964 até a edição do Decreto nº 1.077, de janeiro de 1970, que estabeleceu a censura prévia a livros e periódicos. Nesse campo, é interessante destacar que um dos primeiros atos dos golpistas, já no dia 3 de abril de 1964, foi o fechamento da Editorial Vitória, ligada ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), como parte das ações de repressão ao partido.

A autora nos mostra que entre o golpe e a decretação do Ato Institucional nº 5, em dezembro de 1968, “a censura a livros no Brasil foi marcada por uma atuação confusa e multifacetada e pela ausência de critérios, mesclando batidas policiais, apreensões, confiscos e coerção física”. Mas esse quadro iria mudar após 1968.

Nesse período, destacou-se a figura do editor da Civilização Brasileira, Ênio Silveira, cuja editora era uma das mais visadas pela repressão. Ênio lutou como pôde contra a censura, inclusive expondo-se publicamente – e à sua editora.

Foi a Constituição de 1967, elaborada sob a égide militar, que centralizou a censura como atividade do governo federal. Com o AI-5, a coerção tornou-se constante na imprensa, na TV, no cinema, no teatro e na música.

O Decreto nº 1.077, por sua vez, cujo foco era a repressão a obras que atentassem contra a “moral e os bons costumes”, tinha um escopo mais amplo. Em seu preâmbulo estabelecia uma vinculação direta entre a divulgação de obras com tal teor e a subversão, ao afirmar que a edição dessas  publicações “obedece a um plano subversivo, que põe em risco a segurança nacional”. Dessa forma, praticamente qualquer obra poderia ser considerada atentatória à “moral” e aos “bons costumes”. E era politicamente mais fácil para a ditadura defender a censura moral que a censura política.

Mas mesmo assim houve reação ao decreto, entre as quais a autora destaca as de Jorge Amado e Erico Verissimo, que declararam publicamente: “Em nenhuma circunstância mandaremos os originais de nossos livros aos censores, nós preferimos parar de publicar no Brasil e só publicar no exterior”. Tais respostas fizeram o governo recuar e excluir da censura prévia as obras “de caráter estritamente filosófico, científico, técnico e didático, bem como as que não versarem sobre temas referentes a sexo, moralidade pública e bons costumes”. Apesar dessa mudança, a censura política também continuou a existir.

A obra de Sandra Reimão apresenta um detalhado levantamento da atuação do DCDP, tomando como base a documentação do órgão que ficou guardada no Arquivo Nacional, em Brasília. Com isso, temos a primeira listagem dos livros censurados no país durante a ditadura, ainda que parcial, uma vez que engloba apenas o período entre 1970 e 1982, e limita-se ao material analisado (e arquivado) pelo DCDP. Mas é uma grande contribuição nessa área, pois até então a única lista existente havia sido elaborada por Dionísio Silva, em seu Nos Bastidores da Censura (Estação Liberdade, 1989). Todavia, nessa obra o autor não informa quais foram as fontes utilizadas para sua elaboração.

Um dos dados interessantes apresentados em Repressão e Resistência é o de que o número de livros analisados e censurados pelo DCDP aumento após 1975 (governo Geisel), e até 1979 foi sempre maior do que durante o governo Médici (1969-1974), período considerado por muitos como o mais repressivo. Esses dados precisam ser mais bem compreendidos, mas uma possível explicação preliminar pode estar relacionada ao fato de que no governo Médici, com o clima de repressão mais explícito, muitos editores teriam preferido não editar certos títulos, pois provavelmente seriam censurados – ou seja, teria prevalecido a autocensura. Já no governo Geisel, com as promessas de abertura política, é possível que a autocensura tenha diminuído, levando à edição de mais obras que afrontavam a ditadura, e consequentemente à sua censura.

Outro ponto importante destacado por Sandra Reimão é que “a censura, durante a ditadura militar, teve atuações diferenciadas, não só nos diferentes períodos como também em relação aos diversos meios de comunicação”, ou seja, “havia uma hierarquização da censura, que resultava em atuações diversas em virtude do potencial impacto” do veículo utilizado: “Quanto mais público uma determinada produção cultural pudesse ter, mais ela seria ‘alvo’ de censura”. Daí sua conclusão em favor da ideia de que houve uma “racionalidade da ação censória durante a ditadura”, principalmente após 1968. Tal fato teria levado, por exemplo, a uma censura mais forte sobre sobre a TV e a imprensa e um pouco mais leve em relação aos livros, cujo público em geral é menor que o daqueles veículos.

Sandra dedica também estudos detalhados a quatro livros censurados: Zero, de Ignácio de Loyola Brandão (editora Brasília); Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca (Artenova); Dez Histórias Imorais, de Aguinaldo Silva (Gráfica Record); e Em Câmara Lenta, de Renato Tapajós (Editora Alfa-Omega). Além disso, analisa a censura a dois contos eróticos vencedores do concurso da revista Status, um de Dalton Trevisan e outro de Rubem Fonseca. Apesar da riqueza desses estudos, teria sido interessante se o papel dos editores tivesse sido mais explorado em cada caso, como foi, aliás, no estudo do livro Em Câmara Lenta. Acredito que isso poderia trazer novos elementos de compreensão à história da edição dessas obras.

Não resta dúvida de que o livro de Sandra Reimão traz uma significativa contribuição ao estudo da censura no Brasil após o golpe de 1964, particularmente a livros. Passa a ser uma obra de referência sobre o tema, além de apontar várias possibilidades de pesquisas a partir de trilhas abertas pelos dados e análises apresentados.

Além disso, exibe uma documentação iconográfica muito rica relacionada a alguns dos livros mencionados ou analisados na obra, acrescentando informação ao leitor e tornando Repressão e Resistência valiosa também esteticamente. A reprodução de fac-símiles de pareceres e documentos do Serviço de Censura de Diversões Públicas é outra contribuição inestimável para que possamos compreender melhor a ação da censura e dos censores durante a ditadura. Temos ali alguns exemplos da arbitrariedade e da falta de qualquer justificativa minimamente plausível para a censura aos livros. Trata-se de uma possibilidade de testemunharmos o arbítrio em seu estado bruto e natural, em sua plena indigência intelectual, nesse caso buscando sua justificação, de forma quase sempre risível, numa suposta defesa da sociedade a fim de protegê-la de atos que, para os censores, colocariam em questão a sua moral e os seus costumes.

Flamarion Maués é doutorando em História (USP) e, em seu mestrado, estudou a atuação das editoras de oposição no Brasil durante o período da abertura política (1974-1985). Bolsista da Capes