Estante

Isabel Loureiro nos traz um livro magnífico, sua tese de doutorado, Rosa Luxemburg. Os dilemas da ação revolucionária. Nele, a análise fina que empreende da experiência política de Rosa Luxemburg é utilizada para debater a questão fundamental até hoje posta para os socialistas: será que as massa "aprendem realmente com suas próprias experiências e se emancipam?" (p. 13).

A autora vai discutir o problema situando-o no interior da problemática colocada para Rosa Luxemburg, como uma das mais destacadas teóricas marxistas da virada do século atuando a partir da experiência então acumulada pela social- democracia alemã. Assim, o que para Isabel emerge como nexo de coerência nas reflexões de Rosa é a relação entre teoria e prática, que para ela não podiam ser separadas. A autora vai localizar nesta relação o foco de um impasse teórico ainda não resolvido, "mais do que uma ambigüidade, uma tensão a que uma teoria revolucionária de cunho marxista dificilmente poderia fugir. Não há Aufhebung nem 'dialética histórica' capaz de resolvê-la" (p. 15).

Para Rosa Luxemburg noções como massas, partido e consciência de classe fundamentam-se numa "concepção marxista da história" como totalidade, na visão de uma "dialética histórica". Nesta totalidade, "o presente não pode ser inteiramente compreendido em si mesmo, isolado do passado e do futuro, mas está aberto e aponta para o futuro" (p. 69). Esta determinação recíproca entre presente e futuro, reforma e revolução, movimento e objetivo final engloba a experiência, a ação, a luta e é o processo que permite "às massas inconscientes, incultas, naturais, instintivas, classe em si, elevarem-se à consciência, à cultura, à razão, ou seja, tornarem-se classe para si, saírem da alienação" (p. 63). A história tem um sentido, uma lógica imanente, embora a vitória final não seja "uma lei 'natural', garantida pela evolução do capitalismo, mas uma possibilidade dada no interior da própria luta" (p. 71).

Portanto, para Rosa, a teoria da revolução proletária de Marx compreende a realidade como essa totalidade viva. O proletariado como classe universal torna-se consciente no próprio processo da sua formação como classe, por sua própria experiência prática. E é a "auto-formação do sujeito revolucionário que permite a vinculação entre a teoria e a prática". A forma de "passar da teoria à prática consiste na consciência de classe (latente, teórica e que se torna prática nos momentos revolucionários), encarnada, não no partido... mas na própria classe, com as suas múltiplas formas de expressão" (p. 72).

A partir de 1914, porém, a concepção de massas de Rosa torna-se menos utópica: "a teoria precisa dar conta do inaudito - a adesão entusiástica das massas proletárias à guerra" (p. 46). Ela tem que explicar porque as massas (e não somente o Partido Social Democrata) "traíram" o ideal socialista; tem que reconhecer a possibilidade de uma derrota definitiva da revolução proletária e de uma vitória da barbárie. Os trabalhadores aceitam espontaneamente cometer o suicídio coletivo nos campos de batalha; a barbárie está inscrita no campo do possível.

A crise da social-democracia

Isabel Loureiro debate longamente o problema da integração do proletariado lembrando que a social-democracia "estava integrada à sociedade que lhe dera origem, havendo, além disso, uma espécie de simbiose entre ela e a classe operária alemã. É o que, aliás, permite a Rosa Luxemburg, polemizando com Lenin, definir a social-democracia não como um partido ligado à organização da classe operária, mas como o próprio movimento da classe operária"'( p. 121).

Com a guerra, o PSD alemão divide-se em três alas: a direita de Ebert/ Scheidemann vai integrar o governo e em 1918/9 reprimir o movimento revolucionário; o centro vai formar o PSD Independente; e os membros da esquerda revolucionária vão organizar a pequena Liga Spartakus, que não dispõe de uma implantação de massa relevante.

A possibilidade de evolução da consciência de classe do proletariado alemão não está clara. Ganha então força a atividade de agitação e esclarecimento desenvolvida pela vanguarda revolucionária, enquanto se espera que as leis imanentes da história arrastem as massas novamente à ação.

Neste momento, Rosa reforça ainda mais sua convicção de que "a consciência de classe se funda no agir, não é uma essência imutável, pura, uma característica natural, conseqüência de sua situação no processo produtivo. O proletariado se torna revolucionário na luta" (p. 130). Rosa tem que reconhecer que o proletariado alemão de antes da guerra não era revolucionário, tinha uma força apenas aparente.

A revolução alemã

A compreensão de Rosa do marxismo como unidade entre teoria e prática é submetida a seu teste definitivo na revolução alemã. As poucas semanas entre novembro de 1918 e janeiro de 1919 condensam os dilemas da ação revolucionária postos para Rosa durante toda sua vida. Enfrentando o problema de "como fazer a revolução numa conjuntura ao mesmo tempo revolucionária e conservadora", Rosa não encontra uma solução.

Em 9 de novembro eclode uma greve geral em Berlim e conselhos são formados em todo o país. O Imperador renuncia. O governo de coalizão PSD e PSD Independente defende a convocação de uma Assembléia Nacional. O 1º Congresso dos Conselhos, reunido em dezembro e controlado pelo PSD rejeitou (por 344 votos a 98) a proposta dos spartakistas de que o poder fosse exercido pelos conselhos. Apóia a eleição de uma Assembléia Nacional.

"Rosa fica continuamente enredada na mesma teia: como é possível assegurar um futuro emancipado com um sujeito histórico alienado?... Recusar as massas reais significaria cair no mais arbitrário vanguardismo, eficiente como Realpolitik, mas de resultados desastrosos como política emancipadora. Donde um pé na canoa da necessidade histórica - garantia da vitória contra ventos e marés - e outro no da atividade da massa popular, oscilante, submetida aos caprichos da fortuna... É o mesmo velho dilema, em novo contexto" (p. 152).

Os spartakistas realizam seu congresso em 29 de dezembro, fundando o Partido Comunista Alemão. Rosa e a direção do partido avaliam que deveriam participar das eleições de 19 de janeiro para a Assembléia, mas o congresso aprova a proposta de boicotar as eleições (por 72 votos a 23). Quando em 4 de janeiro, uma crise provoca a saída dos Independentes do governo e radicaliza a vanguarda, uma insurreição ocorre em Berlim e um comitê revolucionário é formado. Embora reconhecendo que era uma luta sem perspectivas, Rosa e Liebknecht a estimulam. As tropas do governo social-democrata aliadas a grupos paramilitares de direita desencadeiam uma sangrenta repressão contra os operários sublevados. Dia 15 de janeiro, Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht são detidos e assassinados.

Neste período febril, "Rosa permaneceu fiel à sua teoria política: a ação de massas cria as próprias organizações e permite o desenvolvimento da consciência de classe, processo no qual seriam resolvidos os problemas da tomado do poder e do que fazer com ele após a vitória. A ação supre planos, organização, falta de clareza sobre as tarefas a cumprir: à medida que os problemas surgem, com eles nascem as respostas, desde que haja total liberdade de movimento" (p. 176).

A conclusão de Isabel Loureiro é dura: na problemática desenhada por Rosa Luxemburg, a tensão entre a prática reformista do proletariado e o objetivo final socialista, entre o existente e o possível, não parece ter solução. Apesar de toda a inteligência, a coragem e a determinação de Rosa Luxemburg, "é preciso admitir que o século está a exigir da esquerda respostas bem mais complexas do que as que ela deu ou poderia ter dado" (p. 15). Sua grandeza consiste em ter posto no centro do palco "a tentativa dramática de manter unidos o que é e o que pode ser" (p.190).

José Corrêa Leite é membro do Conselho de Redação.