Estante

Sergio Buarque de Holanda e o BrasilA boa surpresa do livro Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil - reunindo trabalhos do seminário em homenagem ao historiador, coordenado pelo organizador (Rio, 1997) - é o delinear gradativo de um perfil político.

Dois dos trabalhos dão especial realce a esse perfil: o de Antonio Candido e o de Luiz Dulci.

O primeiro começa lembrando a participação do homenageado no grupo modernista e as posições que então assumiu, delas emergindo um Sérgio libertário.

Em seguida, resistindo ao regime varguista, veio a ser um dos fundadores da Associação Brasileira de Escritores (ABDE) em 1942, e daí por diante um de seus membros mais ativos. Foi signatário do manifesto da entidade clamando por liberdades democráticas, em 1945. Logo depois, colaborou na fundação da Esquerda Democrática, que passados dois anos se tornaria o Partido Socialista Brasileiro.

De sua atuação na ABDE vale lembrar o segundo congresso paulista, em 1949, quando, tomando a dianteira da frente ampla -  que ia do centro até a esquerda - coligada contra a ditadura, um grupo de intelectuais socialistas idealizou uma declaração de princípios, cuja redação final coube a Sérgio, defendendo a liberdade de criação e os direitos da inteligência.

Na recente gestão militar, o historiador não cessou de fazer oposição, aposentando-se da Universidade de São Paulo em protesto contra a exclusão compulsória de coletas pelo AI-5, de infame memória. Foi a pior fase que ocupou a vice-presidência do Centro Brasil Democrático. Todas essas  atuações, bem como muitas outras em que empenhou seu enorme prestígio local e internacional de pensador  e socialista, culminaram em sua presença no ato de fundação do Partido dos Trabalhadores, em 1980.

O autor do trabalho passa dessa especial militância para uma análise do último capítulo de Raízes do Brasil, salientando como as idéias ali expostas são coerentes com um tal percurso, sobretudo quando contrastadas com as de Oliveira Viana e Gilberto Freyre. Ao proceder à crítica do liberalismo, Sérgio recusa as saídas coevas - o livro é de 1936 -, fascistas ou comunistas, apostando no cunho democrático-popular de uma possível solução brasileira, baseada no advento das massas urbanas e na liquidação da herança institucional lusa, preservada pelas oligarquias liberais no país. Neste ponto, não alberga qualquer nostalgia das raízes portuguesas, bem ao contrário daqueles dois autores.

Já Luiz Dulci escolhe um tema revelador do engajamento de Sérgio: sua dedicação de toda uma vida a estudar o Brasil. Não menosprezava o país como objeto de pesquisa e reflexão, assim como não admitia o predomínio de uma disciplina científica sobre as demais, nem mesmo a economia, esta armadilha tanto para direita quanto para a esquerda.

Integram ainda o livro outros excelentes ensaios, aqui silenciados pelo enfoque político, avaliando diferentes aspectos da obra do historiador. Raymundo Faoro estuda as instituições brasileiras; Antonio Arnoni Prado a crítica do modernismo; Maria Odila Leite da Silva Dias as relações entre política e sociedade; Ilana Blaj a cultura material; e Ronaldo Vainfas as representações mentais.

Mas todos contribuem, a seu modo, para o perfil político que se delineia. Assim, por exemplo, Raymundo Faoro observa o ângulo pelo qual Sérgio analisou o Império, acentuando que nossas instituições políticas carecem de legitimidade, ao mostrar como o liberalismo é autoritário, o imperador despótico, o parlamento eleito mediante fraude, os partidos só interessados em eleições. E Antonio Arnoni Prado avança a hipótese de que o pensamento de Sérgio, mesmo à altura, era mais progressista, ou revolucionário, que o de todos os modernistas. Completa-se assim o perfil político privilegiado nesta breve notícia.

Walnice Nogueira Galvão é professora da Faculdade de Filosofia, Ciências Humanas e Letras da USP.