Estante

Simulacro e poderTematizar a atualidade é uma das dimensões mais vitais do novo livro de Marilena Chaui, Simulacro e Poder – Uma Análise da Mídia. Nos três textos e um anexo, agora reunidos neste livro, comparecem e são enfrentadas temáticas cruciais para a contemporaneidade, seja internacional, seja brasileira: mídia e imagem, medo e direitos humanos, violência e o mito da não-violência. A atualidade e o entrelaçamento entre tais temas conformam o bom exercício do intelectual público em seu ofício de desmascarar as ideologias vigentes hoje na sociedade capitalista.

No terceiro texto, “Democracia e autoritarismo”, o mito da não-violência, tão presente em terras brasileiras, é tratado. Uma contundente pergunta é desde logo formulada: “...não será fantástico que se diga (e se acredite) que o Brasil é um país da não-violência?” (p.123). São então desnudados procedimentos configuradores do mito condensados em expressões como: os brasileiros não são violentos e a violência é acidental no país. Em seguida, são questionadas a localização e circunscrição da violência no crime; a explicação da violência pelo recurso à idéia de anomia social; a história escrita pelos vencedores e as máscaras através das quais o mito se reproduz. A  “banalização do mal” (Hanna Arendt) se ancora no Brasil, conforme Chaui, em dois potentes pilares: o caráter autoritário de nossa estrutura societária, mesmo sob regimes ditos democráticos, e a divisão social sob a forma da carência e do privilégio.

“Direitos humanos e medo”, segundo texto do livro, é límpido e instigante. Nele está esboçado um percurso dos medos da Idade Média, do diabo e de deus, até os medos modernos e secularizados, do “homem como lobo do homem”. A autora propõe “uma divisão social dos medos, isto é, as diferentes classes sociais têm medos diferentes” (p.104). Para os dominantes, o medo de perder riqueza, bens, propriedades. Ou melhor, seus privilégios. Para as classes médias, o medo da pobreza, da proletarização e da desordem. Para os trabalhadores, os vários medos condensados na queda na desumanização, através do desemprego, da marginalização, da violência patronal e policial, da miséria.

Medo, violência e direitos declarados como universais, mas, em verdade, bloqueados de se realizar em uma sociedade de classes e desigual. Contradição-chave para a democracia: o Estado prisioneiro dos interesses de uma classe, contraditoriamente, tem de atender aos direitos de toda a sociedade, declarados universais, sob pena de perder sua legitimidade e se mostrar como puro exercício da força e da violência.

O anexo passeia pelo país das palavras e busca decifrar os sentidos das expressões gregas eidolon, eikon e phantásma e latina imago, que significam imagem. Diferentemente das palavras gregas, que primordialmente se referem à visão ou imagens visuais, a latina imago remete primordialmente à imagem sonora das coisas, isto é, a palavra. Por isso, a autora busca tratar também uma família de palavras latinas que remetem à visão,  conformadas em torno da palavra espetáculo. Além do estimulante itinerário semântico, Chaui faz uma breve remissão às teorias do conhecimento: o racionalista de Platão, o empirismo de Epicuro e Lucrécio e mesclas do empirismo e racionalismo de Aristóteles.

O primeiro capítulo – “Simulacro e poder. Uma análise da mídia” – é o central da publicação, oferecendo inclusive título ao livro. Nele a autora tenta elucidar temas como: a destruição da esfera da opinião pública; a encenação e produção do simulacro; o entretenimento; a indústria cultural e a destruição da autonomia do pensamento e das artes; a condição pós-moderna; os meios de comunicação; a informática e o sistema multimídia e os meios de comunicação como poder. O programa apresentado é, sem dúvida, abrangente e complexo. Logo pleno de iluminações e polêmicas. Neste breve comentário é possível apenas sugerir dois tópicos cruciais. Primeiro: uma crítica que retenha apenas o caráter capitalista das contemporâneas redes sociotecnológicas de cultura e comunicação, com todas as suas múltiplas seqüelas realmente existentes, é capaz de elucidar plenamente o sentido societário da presença de tais redes e as mutações sociais associadas a elas nas sociedades contemporâneas? Tal crítica possibilita uma atuação política e cultural consistente, inclusive, em tais redes, visando a uma radical democratização das comunicações e da cultura? A contemporaneidade e uma outra sociedade possível e diversa na sua configuração podem prescindir de sistemas sociotecnológicos de comunicação e de cultura,  ainda que transformados radicalmente? Segundo: o exemplo das nossas recentes eleições, com a vitória de Lula e do PT, apesar da posição contrária de quase toda a mídia nacional, não coloca reticências sobre a pretensa onipotência da mídia? Cabe estar atento e aberto para ver e ouvir, como estiveram, em perspectivas distintas, Benjamin, Adorno e McLuhan, todos eles retomados pela autora em seu livro. A atualidade brasileira tem certamente algo a nos dizer e mostrar, em seu movimento, contradições e dilemas.

Antonio Albino Canelas Rubim é professor da Universidade Federal da Bahia, pesquisador do CNPq e coordenador do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura