Estante

Leitores desatentos de nossos jornais "neo" ou "pós-tudo" podem alimentar a ilusão de que é perda de tempo entender nosso passado (exceto, evidentemente, aquele que anuncia nosso presente "modernizador"). Sobretudo quando ele se refere aos movimentos sociais e de classe. Não bastasse isso, a historiografia dos trabalhadores e suas organizações políticas e sindicais (falando em obras publicadas) sofreu muito com fato de que ela girava em torno do antigo Partido Comunista Brasileiro: as outras correntes de pensamento eram simplesmente ignoradas ou recebiam um tratamento superficial. Assim, quando uma obra primorosa como Solidão revolucionária vem a público é algo que necessita ser destacado.

Este alento não vem apenas do fato de se poder conhecer as origens do trotskismo no Brasil, que eram submetidas a uma visão conspirativa da história - o que por si só seria justificativa mais do que suficiente para estudar qualquer corrente do movimento dos trabalhadores -, mas de que a obra de Castilho recupera um importante e ainda atual debate ocorrido nos anos 20 e 30.

Essa discussão referia-se ao destino que tornavam o socialismo e a Revolução Russa, então já sob a orientação de Stalin. Travada em todos os cantos do planeta, sob a influência das críticas de Trotski, no campo brasileiro ela teve em Mário Pedrosa, Lívio Xavier, Aristides Lobo, Fúlvio Abramo, Plínio Mello e tantos outros seus defensores. Essas vozes, caladas até ontem, discutiam não apenas o que se passava na então URSS, mas também os dramas da crescente burocratização do PCB, já então transformado em um monólito avesso à livre discussão das idéias e numa agência de defesa da política externa da União Soviética.

Essa primeira geração do trotskismo brasileiro deixou importantes marcas de sua luta, examinadas por Castilho. Não apenas no campo sindical, no qual dirigiram a então União dos Trabalhadores Gráficos de São Paulo que, em termos de importância de suas posições poderia ser comparada ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo -, um dos últimos sindicatos a ser oficializado. Ou na luta política, com a Frente Única Antifascista, que, sob sua liderança, conseguiu a proeza de unir todas as organizações dos trabalhadores, inclusive comunistas, para combater a versão brasileira do fascismo, o integralismo, infligindo-lhe uma pesada derrota em uma batalha campal travada na praça da Sé, em 7 de outubro de 1934. Mas, sobretudo, no terreno da análise e elaboração políticas, que pode ser conhecida em uma série de textos hoje já disponíveis. Eles revelam sua capacidade extraordinária de compreender o que acontecia à sua volta e transcender os dogmas que amorteceram a capacidade de elaboração das lideranças comunistas locais por mais de seis décadas.

Por fim, um dos aspectos importantes a ressaltar neste livro e que torna sua leitura verdadeiramente estimulante é que nele a discussão das idéias é inserida no contexto de seu tempo. Castilho nos introduz no centro dos debates daqueles anos. Nos conduz ao lado de Pedrosa e seus companheiros em suas decisões e dúvidas. Mais, nos traça o roteiro intelectual seguido por aqueles homens que resolveram remar à contra corrente da história. Afinal, a Revolução Russa mal havia completado quinze anos e os partidos comunistas de todo o mundo tinham a seu lado os corações e mentes daqueles que acreditam que os ideais de 1917 ainda permaneciam intocados pelos burocratas stalinistas.

Solidão revolucionária só foi possível por meio dos preciosos arquivos e biblioteca do jornalista e interlocutor de Pedrosa, Lívio Xavier - depositados no Centro de Documentação do Movimento Operário Mário Pedrosa (Cemap) -, que conseguiu preservar para as gerações posteriores este roteiro. Lá estão os livros, textos, documentos que os guiaram e influenciaram.

Assim, nada daquele pedante e equivocado modo de só ver o passado com os olhos de hoje (aqueles que leram Camaradas, de William Waack sabem do que falo). Esse péssimo hábito, muito difundido nestes tempos pós-Muro de Berlim, só acaba servindo para produzir justificativas ideológicas àqueles que se consideram vencedores da história, ou que "decretaram" seu fim. A saudável maneira de Castilho tratar a história serve para compreender os homens em seu tempo e auxilia a todos aqueles que querem entender e mudar o seu mundo.

PS - Se já não bastasse o sólido trabalho de Castilho, há em anexo a extraordinária correspondência entre Mário Pedrosa e Lívio Xavier. Ela nos ajuda a compreender as razões pelas quais estes homens ficaram tanto tempo no limbo da história. Talvez, como é dito na apresentação de Francisco Foot Hardman, porque insistiram fazer a verdadeira política, aquela que revoluciona a própria política.

Dainis Karepovs é presidente do Cemap e pós-graduando em História Social na USP.