Estante

capa_sombras_sons-1.jpgA crítica literária Walnice Nogueira Galvão é bastante conhecida, especialmente no âmbito desta revista; por isso, prefiro, em lugar de apresentá-la, evocar uma observação que ouvi no discurso de saudação, proferido por Lígia Chiappini, na cerimônia em que lhe foi outorgado o título de professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas: “Antonio Candido costuma dizer que ‘ela sabe tudo’”. É exatamente a impressão produzida por esta coletânea de 26 textos sobre cinema e música contemporânea cuja tônica é a diversidade, ditada, em parte, pela própria natureza dos textos: resenhas, prefácios, críticas de filmes – lançamentos ou cults de aficionados –, crônicas sobre música popular. Quase todos os textos foram escritos para a imprensa, situação em que a superficialidade pode fazer a regra, e em que, no entanto, a autora confirma o trabalho de exceção, revelando uma impossibilidade de se manter nas águas rasas da observação imediatista.

A diversidade e a reflexão que norteiam a coletânea permitiram à autora da orelha do volume, Olgária Matos, detectar um eixo de pensamento sobre a contemporaneidade: “Easy Rider e o ano de 68”. É possível também reconhecer estruturas que se pode observar em textos de maior fôlego. Sob o inspirado título de “Caninos na carótida” a autora faz desfilar, a pretexto da passagem de Polanski pelo Brasil, uma galeria de vampiros, revenants e monstros literários e cinematográficos de A a Z, revelando, na pincelada rápida da crônica jornalística, a precisão minuciosa da informação que se fecha com uma reflexão que remete a horizontes mais amplos: “Ou bem os pesadelos mudaram, ou bem a realidade os ultrapassou, com vantagem. O cinema, por sua vez, embrenhou-se numa escalada de violência cujo termo não se divisa. Hoje os vampiros, e outras projeções fantásticas, parecem encantadoramente datados. Surgem à distância para nós, agora, e podemos encará-los até com afeto”.

A cobertura da música popular de “Canção, sociedade e poder”, que começa com os sambistas dos anos 30, passando pela música de protesto sob o regime militar e chegando à variada produção musical dos anos 80, preparada para o público mais específico da Cité de la Musique, em Paris, impressiona igualmente pela vasta gama de compositores evocados. É o que podemos ver também em “Sem véus”, com um levantamento do cinema árabe recente e em “Releituras de 68”. Na verdade, é o mesmo procedimento que procura abarcar de maneira exaustiva um determinado assunto e que norteia um texto fundamental de Walnice Nogueira Galvão, “Sobre o Regionalismo”, em que o objetivo é o romance de Guimarães Rosa; mas até chegar lá o leitor pode acompanhar um levantamento preciso e precioso sobre o regionalismo brasileiro desde o romantismo.

Esses “recortes”, que exercem a sedução do fragmentário, tão a gosto do leitor contemporâneo, revelam uma completa ausência de pré-conceito: Paulo Coelho, Harry Potter, Zé Carioca, Noel Rosa, Mário de Andrade, Visconti, Jacques Tati, Ang Lee e tantíssimos outros centralizam a reflexão alentada.

Não posso deixar de aludir à escritura literária da ensaísta, que se pode notar em muitos momentos, como, por exemplo, ao descrever os veteranos do Buena Vista Social Club, transformados em personagens: “(...) a esplêndida expressão corporal; a montagem de uma persona de palco dotada de carisma e discurso próprio; a composição de uma personagem com escolha de indumentária, chapéu ou boné em ângulo impertinente, charuto entre os dedos; o penteado, excêntrico, conotando um senso muito particular de elegância, nada conformista”.

A montagem do volume oferece ainda um atrativo extra: as fotografias que se antepõem a cada texto, muito boas e algumas excepcionais, como a bela imagem de Zuza Homem de Mello em meio à sua coleção de discos, o impressionante olhar da diretora iraniana Samira Makmalbaf ou o registro sociológico na cena de O Sol Nasce para Todos.

Em suma, textos escritos para um momento pontual podem se converter em leitura de cabeceira até que o leitor tenha assimilado tanta informação.

Gloria Carneiro do Amaral é professora livre-docente do Departamento de Letras Modernas da Universidade de São Paulo (USP)