Estante

Um nordeste em são pauloO livro de Paulo Fontes foi concebido originalmente como uma tese de doutorado em História, defendida na Universidade Estadual de Campinas, em 2002. O texto de quase 350 páginas, amparado por uma pesquisa vigorosa de documentos, surpreende por fluir agradavelmente e sustentar uma integridade admirável. Durante esse mergulho em São Miguel Paulista das décadas de 1940 a 1960, que abriga a indústria Nitro Química, encontramos personagens distintos que compartilharam trajetórias semelhantes e observamos seu papel na composição de um bairro operário, dentro da maior metrópole do país.

Para além da fria estatística que constata o crescimento de São Paulo entre as décadas e 1950 e 1970, Fontes nos mostra atores invisíveis que constituíram esse vigoroso movimento populacional. As redes sociais cimentam a história apresentada ao longo do livro. O contato com parentes e conhecidos está presente desde o convencimento na terra natal para vencerem seus medos e partirem para a "promissora" São Paulo até o estabelecimento dos migrantes na cidade de destino. A solidariedade que permeava as muitas experiências compartilhadas envolvia o apoio para obtenção de empregos na fábrica, o ensino das tarefas executadas no local de trabalho, bem como a composição das estratégias de resistência e organizativas na luta por direitos.

O bairro assume um papel importante na constituição e articulação das redes sociais daqueles trabalhadores. Desde os primeiros dias nas pensões, nos mutirões para construção de casas nos loteamentos populares, eram formados os laços que seriam acionados em caso de doenças e outras eventualidades. Os espaços de sociabilidade, como os bares, bailes, clubes, cinemas e jogos de futebol, foram palcos para o fortalecimento de tais relações. A vivência no bairro proporcionou uma arena de luta fora dos muros da fábrica. As ruas enlameadas nos dias de chuva, a falta de saneamento básico e o precário sistema de transporte agruparam os moradores de São Miguel na exigência de melhorias perante o poder público.

O preconceito contra os migrantes foi constante. Apesar de provenientes de estados e regiões diferentes, eles foram identificados pela genérica denominação de "baianos". Associados à vida na periferia, aos trabalhos insalubres, à violência com o uso da famigerada "peixeira", foram estigmatizados como rudes e desordeiros. A essa visão negativa, os migrantes responderam com a criação de uma identidade nordestina, que valorizava seu importante papel na construção do progresso na cidade. Essa identidade, devidamente associada ao caráter de classe, fomentou uma cultura afirmativa que ostentava o trabalhador como cidadão e portador de direitos.

É com esse olhar, situado no nível microscópico das ações cotidianas, que o autor problematiza uma ideia que décadas atrás constituiu uma visão negativa acerca dos trabalhadores em São Paulo. Para muitos intelectuais, a origem rural dessas pessoas que chegavam ao estado em um período de crescente industrialização havia contribuído enormemente para sua passividade e predisposição ao imobilismo diante das condições de trabalho. Percebemos durante a leitura da obra que a crescente classe trabalhadora, embora sem uma tradição operária, instituiu movimentos reivindicatórios consistentes tanto no âmbito do chão de fábrica como na composição da célula comunista conhecida como "o orgulho do PCB". No âmbito da "grande política", a conhecida tese da cooptação das massas trabalhadoras por lideranças demagógicas desmorona diante da participação ativa dos personagens desse livro.

Um Nordeste em São Paulo é uma contribuição importante para a compreensão da trajetória da classe trabalhadora. Muito além de um estudo de caso, é uma obra essencial para todos aqueles que se interessam pela história do Brasil no período de 1930 a 1964.

Samuel Fernando de Souza é doutor em História Social do Trabalho pela Unicamp