Estante

Capa Um povo a mais de milTalvez o carnaval baiano não chegue a ser a maior festa popular do planeta, como muitos gostam de anunciá-lo (pelo menos é sério candidato: não se vê com facilidade bem mais de um milhão de pessoas dançando por cinco dias seguidos nas ruas de uma grande cidade), mas é certamente uma das manifestações culturais mais importantes do Brasil.

O carnaval carioca é espetáculo maior, por certo, mas a pândega soteropolitana é massiva, pouco formalizada, espontânea. A festa de Olinda e Recife também é assim, claro. Mas na Bahia, ao contrário dos eternos rivais mais ao norte, a soltura segue junto com uma permanente recriação, muito evidente na música (ritmos e coreografias novos quase todo ano), menos perceptível nos costumes e atitudes (como as múltiplas heranças do 68 tropical, reproposto a cada fevereiro com os desbundes da Praça Castro Alves) e na afirmação étnica (o triunfo da percussão africana com o Olodum, depois de séculos de tentativas de escondê-la ou mascará-la).

A reafirmação das velhas raízes, porém, não é cristalização de tradições. Elas aparecem em formas novas e fugazes, típicas de uma metrópole terceiro- mundista no fim do milênio, antenada no que vai e no que foi pelo mundo (o trio elétrico faz a multidão dançar, num reggae abaianado, os acordes iniciais da 5ª Sinfonia de Beethoven).

Como se chegou a isto? Por que o carnaval e as formas culturais mais típicas da Bahia não foram castradas e pasteurizadas pelo padrão global, apesar da urbanização acelerada e das transformações sociais e econômicas das últimas décadas?

O delicioso livro Um povo a mais de mil ajuda a conhecer e discutir estas questões, contando um pouco da trajetória que liga o entrudo setecentista baiano à orgia momesca de hoje. Não se procure um relato histórico sistemático e rigoroso no trabalho do ilustre jornalista, querido amigo e conterrâneo Rogério Menezes. Mas não se trata apenas de um livro de histórias (ou estórias?), como ele parece sugerir ou fazer em certos momentos.

Trabalhando com editoriais e noticiário da imprensa, além de outros documentos da época, Rogério mostra com muito humor a luta consciente e secular da elite branca e reacionária para silenciar a voz africana do povaréu, tão bem expressa nos malditos batuques e nas brincadeiras lascivas e irreverentes que acompanhavam os festejos do entrudo, costume português logo adotado por escravos e outros pobres da terra.

Às vésperas da quaresma de 1831, antevendo a chibança, o governo da província decretava: "depois do toque de recolher, ficam proibidos lundus e quaisquer outros divertimentos populares com vozerios e alaridos que perturbem o sossego público... Da mesma sorte, são proibidos os batuques, danças e ajuntamentos de escravos em qualquer lugar e a qualquer hora.

Foi justamente mais uma tentativa frustrada de liquidar o entrudo que levou a elite baiana a criar o carnaval por decreto, em 1884. Para isto foram organizados bailes de salão e, mais importante, desfiles de sociedades carnavalescas (Cruz Vermelha, Fantoches) - festas privadas só para brancos e folguedos de rua "civilizados", "europeus".

O tiro saiu pela culatra. O sucesso dos desfiles entre a massa pobre foi enorme e os negros logo organizaram seus próprios clubes, nada menos que quatro na década seguinte. Pior: antes e depois dos desfiles teimavam em farrear, "reentrudizando" o carnaval.

Em 1904, o Jornal de Notícias pedia que o carnaval não fosse empanado "pelo africanismo de anos anteriores e contra o qual deve agir a polícia. Os pequenos grupos de batuques ofendem a civilização desta terra, dando às festas carnavalescas tons de extremo mau gosto ".

As festas privadas continuavam privadas e a malta continuava nas ruas. Aos batuques e à farra somava-se agora o gosto pelas alegorias, pelo desfile organizado caminho para os blocos e afoxés que iriam dar a marca do carnaval baiano décadas depois, enquanto as grandes sociedades morriam lentamente, ao som dos trios elétricos e dos batuques cada vez mais africanizados.

Nos últimos anos, felizmente, vem se ampliando a reflexão sobre os determinantes e as peculiaridades da relação de integração e conflito entre os dois grandes pólos culturais de Salvador, tão bem expressa na sua festa maior. Afinal, por que justamente na Bahia os negros melhor preservaram seus costumes, suas manifestações culturais? E mais, por que ali se formou este clima afro-brasileiro tão característico?

Rogério Menezes insiste muito no "momossexualismo", sem o qual o carnaval baiano não seria o que é. Retoma assim uma tese conhecida, mas pouco analisada: a cultura baiana se explicaria em boa medida pela vivência muito peculiar da sexualidade, no plano pessoal e público ("na Bahia, o pecado, mais que ao lado, mora dentro de cada um"; "overdose de sexualidade emanada pelas ruas, becos e vielas de Salvador de hoje"; não apenas o carnaval, mas a própria cidade seria uma "inebriante celebração do prazer e da lascívia").

O depoimento de Stefan Zwcig sobre a festa do Bonfim de 1942 é apresentado em defesa da tese: "havia uma enorme sofreguidão naquela gente, que parecia um enorme animal colorido, pronto a lançar-se sobre sua presa". Mais de duzentos anos antes, em 1718, o historiador francês La Barbinais foi mais um dentre os viajantes a se espantarem com a lascívia na Salvador colonial, redigindo vigorosas condenações à libertinagem que presenciara nas comemorações da Semana Santa.

Da mesma forma, perde-se na memória o gosto pelo travestismo, tão bem explicitado no Maria Rosa, cordão carnavalesco dos anos trinta: "a bordo de nada confortáveis tamanquinhos, os mocetões, em sua maioria descendentes de portugueses, desfilavam pelas ruas batendo os pezinhos no chão". Como não era coisa de negros, ganharam elogios da imprensa, antecipando em algumas décadas a afirmação da cidadania gay.

Mas Salvador nunca foi e não é apenas festa. Rogério insiste nos contrastes violentos da cidade: "frenética, lasciva, dionisíaca e heterodoxa na prática, conservadora, castradora, apolínea, ortodoxa na teoria, no discurso". Aqui discordo do meu amigo: características tão opostas e extremadas aparecem tanto no discurso quanto na prática; estão vivas em toda a cultura baiana.

Como foi e continua sendo possível chegar a sínteses tão fortes e originais, partindo de contradições tão acentuadas? Estas e outras questões perpassam Um povo a mais de mil e estimulam sua leitura.

Carlos Eduardo Carvalho é membro do Conselho de Redação de T&D.