Estante

Em boa hora, Tin Urbinatti acordou para o resgate literário de sua produção teatral. Em 2011 publicou Peões em Cena, no qual narra a condução do Grupo de Teatro Forja, do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo.

Agora, em 2022, Tin avança no passado com a publicação de Teatro Sob Fogo Cruzado. Desta vez é a história do Grupo de Teatro das Ciências Sociais (GTCS) da Universidade de São Paulo que convida o leitor, vivida e contada por ele.

Nessa démarche pouco leninista (avançando um passo no tempo e recuando dois na memória) um dia ainda saberemos por que artes e malabarismos o José Alberto veio ao mundo e desafiou percalços de uma infância humilde em Catanduva, São Paulo. Por ora devemos nos satisfazer com a fase universitária dessa fascinante trajetória.

Paulo Moreira Leite aborda aspectos da vida e da obra do autor num prefácio transparente: “Um teatro a serviço da liberdade”. Testemunha da atmosfera captada no livro, o jornalista conviveu com as apresentações do grupo em barracões da USP e depois Brasil afora. Ele nos informa que além de autor, Tin é também ator, professor, formador de atores e diretor, entre outros papeis – e sociólogo, pois a militância não o impediu de concluir o curso.

Passando à Introdução do livro, a condução da narrativa é assumida pela primeira pessoa. Tin detalha então um pouco de sua formação, suas referências políticas e estéticas e, claro, antecipa o conteúdo da obra. Que surpreende, pois não se trata apenas de um misto de reflexão e depoimento autorizado da experiência teatral.

Encontramos feição aproximada de um dossiê (para evocar os anos de chumbo). O núcleo da exposição se estrutura em duas partes, a que cobre as atividades do GTCS em 1972-76 e as atividades de 1977-79. A seguir, Murilo de Carvalho se incumbe do Posfácio, publicado no jornal Movimento: “Tin Urbinatti e as incríveis artimanhas do teatro estudantil”.

Após o Posfácio, um Caderno de Imagens reaviva a encenação das peças e outras cenas contemporâneas. Por fim, as informações sobre Tin e o Grupo de Teatro são complementadas com a seção de Documentos – dos órgãos de repressão (!).

Até a resposta da Casa Militar da Presidência ao Habeas Data que ele protocolou integra a juntada do processo. Ficamos então sabendo de fatos estarrecedores (para a ditadura), como, por exemplo, que Tin, “em 27 de março de 1983 encenou, em São Bernardo do Campo (SP), a peça denominada ‘Brasil S.A.’, através de mímicas”.

A grande surpresa do livro é trazer o texto integral das peças encenadas nos respectivos períodos. E cada uma vem acompanhada de informações pelo autor, permitindo entendê-la melhor a partir de sua aparição naquele contexto.

A primeira parte ou período começa com o “Lançamento da pedra fundamental”, em 1972 – a reunião e preparação inicial do grupo para a peça de lançamento. E assim vão desfilando os textos, nessa parte e na seguinte, como que numa galeria do tempo, fazendo o autor as honras de anfitrião.

Pausa. Um teatro engajado, contestador, crítico, ou como quer que se chame a essência daquele ato de resistência, teria de enfrentar o fogo (em alguns casos literal) da ditadura. Acontece, por outro lado, que a trincheira democrática nunca foi exatamente um ninho de beija-flores.

A primeira peça encenada pelo grupo foi “Dr. Getúlio, sua vida e sua glória”, de Dias Gomes e Ferreira Gullar. Uma audácia. Escolher a figura histórica que a Ciência Política da USP cataloga como a encarnação do populismo. A nêmese da elite quatrocentona. Além disso, uma peça escrita por gente do Partidão, um dos quais dramaturgo da Globo. Por cúmulo, apresentá-la a um estudantado com pendores trotskistas. Não era, realmente, uma decisão para omissos.

Talvez por isso o livro se intitule Teatro Sob Fogo Cruzado, recolhendo petardos desiguais lançados do campo fascista e do democrático. O autor não dá nenhuma pista a esse respeito, é verdade. Mas o resenhista sente-se autorizado à suposição.

Ainda sobre o título, ficou uma dúvida. A capa do livro traz a frase “Grupo de teatro da Ciências Sociais” numa posição ambígua, logo abaixo da frase principal. Parece um subtítulo. Mas veja, pode ser também o nome de um coautor (está logo acima do nome “Tin Urbinatti”, com fonte e corpo idênticos). A ficha catalográfica não registra tal frase. Enfim, se foi acidente do labor editorial, mais ainda terá sido intenção do destino, lembrando a todos que uma obra dessa natureza terá sempre autoria coletiva.

No total o livro contém 370 páginas. Sua capa é atraente, cor de fogo, como as brasas de um Brasil que ainda martela o ferro incandescente de sua estrutura.

A escrita é fluente e carrega as marcas do combate que o autor insiste em travar pelo sonho de um país – o mesmo sonho, aliás, do personagem da primeira peça que o grupo levou ao palco, cinquenta anos já passados.

Em resumo, um resgate oportuno para mais de uma geração.

Carlos Vidotto é autor de Samurai Gushiken. O real alicerce contra a infância perpétua, Rastilho Editorial, 2021