Estante

Teoria Marxista da Dependência (ou, simplesmente, TMD), tema da obra de Mathias Seibel Luce, é a designação hoje consagrada a uma perspectiva de análise que, inspirada na obra do filósofo alemão Karl Marx (1818-1883), dedica-se a elucidar as particularidades das formações sociais capitalistas dependentes, tais como aquelas existentes hoje na América Latina. A história da TMD remonta mais imediatamente às décadas de 1960 e 1970. Entre seus fundadores merecem destaque Ruy Mauro Marini,  Theotônio dos Santos e Vania Bambirra. Nascidos no Brasil, foram vítimas de perseguição após o golpe de 1964 – razão pela qual a TMD acabou, também, exilada do cenário político e acadêmico nacional, tendo se desenvolvido, sobretudo, no exterior.

A TMD surgiu como formulação alternativa à chamada Teoria da Dependência. Esta, por sua vez, constitui uma reação à obra de W. W. Rostow, publicada em 1960 e intitulada Etapas do Crescimento Econômico: um manifesto não comunista. Anti-comunista fervoroso, Rostow propõe que o desenvolvimento capitalista estaria ao alcance de qualquer país. Tratava-se então de identificar e superar os entraves que permitiriam às chamadas economias não desenvolvidas experimentar suas próprias “decolagens”. Amplamente difundida, sua obra constitui uma resposta política e supostamente científica à expansão do bloco soviético no período posterior à Segunda Guerra Mundial, ao acelerado processo de desenvolvimento então vivido pela União Soviética e à paulatina ascensão dos movimentos de libertação nacional.

A TMD se diferencia não apenas das teorias do desenvolvimento aventadas por Rostow, mas também das concepções sobre dependência então predominantes na  Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal); concepções estas que, capitaneadas pelo brasileiro Celso Furtado e pelo argentino Raul Prebisch, apontavam para uma saída baseada em uma política de desenvolvimento capitalista planejado ou politicamente orientado. Diferentemente, a TMD advoga, em poucas palavras, que um processo de desenvolvimento alinhado às necessidades populares pode ser atingido senão no impulso de um movimento que assuma, concomitantemente, contornos anticapitalistas e, consequentemente, anti-imperialistas.

Publicada em 2018 pela Editora Expressão Popular, a obra Teoria Marxista da Dependência: problemas e categorias. Uma visão histórica, de Mathias Seibel Luce, assume duplo propósito. Primeiro: apresentar e desenvolver teoricamente categorias fundamentais da TMD. Segundo: empregar tais categorias em esforços concretos de interpretação, baseando-se para isso em estatísticas relativas à atividade econômica das formações sociais capitalistas latino-americanas. A obra inclui apresentação de Jaime Osório, pesquisador mexicano e discípulo de Marini, além de comentário de João Pedro Stédile, líder do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Encontra-se estruturada em quatro capítulos, precedidos por introdução do próprio autor – que atualmente é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) –, e conta entre suas publicações outros trabalhos importantes dedicados à TMD.

Na introdução, Luce apresenta em termos gerais seu objeto de estudo, as bases teórico-metodológicas que o orientam, além dos objetivos e estrutura da obra. Os três primeiros capítulos do livro são dedicados, cada qual, à apresentação de uma categoria fundamental da TMD. São elas: a “transferência de valor como intercâmbio desigual”, que abarca as transferências de valor existentes nas trocas que se estabelecem entre economias centrais e dependentes; a “cisão nas fases do ciclo do capital”, entendida como “divórcio entre a estrutura produtiva e as necessidades das massas”; e a “superexploração da força de trabalho”. A obra se encerra com capítulo dedicado à relação entre “dependência, revolução e transição”, que apresenta trabalhos de diversos autores ligados à TMD, enfatizando suas implicações políticas e suas diferenças com outras perspectivas de análise dedicadas ao tema do desenvolvimento na periferia do capitalismo.

Conforme esclarece o autor em apresentação, a obra oferece, de um lado, uma síntese útil a autores já iniciados nas formulações da TMD. De outro, proporciona uma introdução a interessados que não estejam, ainda, familiarizados com o assunto. Não obstante, é conveniente o alerta, registrado pelo próprio autor, de que, para aqueles não iniciados nas categorias de Marx – sobretudo aquelas desenvolvidas em O Capital – a obra apresenta alguma dificuldade. Em todo caso, como síntese ou introdução, o trabalho em questão é uma expressão da relativa retomada das reflexões desenvolvidas a partir da TMD, após longo período de ostracismo nos círculos políticos e acadêmicos nacionais.

Para além de seus muitos méritos cabe, por fim, a indicação de alguns temas que não chegam a merecer maiores desenvolvimentos na obra. A ênfase na dimensão conceitual da TMD, bem como sua mobilização como recurso interpretativo, se dá em detrimento de referências aos embates políticos e acadêmicos que, desenrolados no pós-Segunda Guerra Mundial, conduzem à sua conformação como um campo de investigação científica e de engajamento político. Outro aspecto que merece relativamente pouca atenção diz respeito às formulações de Lenin e, mais ainda, às de Marx – entre outros autores marxistas –, que, para além das teorias do valor e do imperialismo, podem contribuir muito para o ulterior desenvolvimento da TMD.

A relativa ausência de tais temas, de qualquer modo, em nada diminui o brilho e a importância da contribuição de Luce como obra de síntese e de introdução. Apenas revela o quão vastos são o paradigma da TMD e desafios que restam por realizar.

Carlos Henrique Menegozzo é sociólogo e bibliotecário especialista em arquivologia pela Universidade de São Paulo