Estante

Se é fato que no decurso do século 20, com os expressivos acontecimentos que despontaram no plano internacional, as discussões e teorizações a respeito de processos revolucionários ascenderam em diversos países da América Latina, é igualmente real que o fenômeno não prosseguiu com a mesma força até a nossa atualidade. No Brasil, o debate que, durante um considerável espaço de tempo, obteve amplo destaque entre os militantes e intelectuais de esquerda enfraqueceu progressivamente – sobretudo após os saldos adversos da ditadura iniciada em 1964 e com a decadência do socialismo real. Porém, apesar da atenuação significativa de discussões profundas acerca da realidade e da “revolução brasileira”, o assunto ainda se configura interesse atual e carece ser resgatado. À vista disso, a coletânea Caminhos da Revolução Brasileira, organizada por Luiz Bernardo Pericás, surge, em um momento bastante oportuno, lançando luz sobre essa longeva discussão.

Pericás é professor de História Contemporânea na Universidade de São Paulo (USP) e autor de livros como Che Guevara e o Debate Econômico em Cuba (2018), Caio Prado Júnior: uma biografia política (2016), Cansaço: a longa estação (2012), Os Cangaceiros: ensaio de interpretação histórica (2010), além de ter integrado a organização da coletânea Intérpretes do Brasil: Clássicos, rebeldes e renegados (2014). Em Caminhos da Revolução Brasileira, Pericás empreende uma exposição acurada acerca das discussões que integraram o processo de pensar-se a “revolução brasileira”, selecionando, para tal, os artigos de vinte intérpretes – incluindo tanto os escritos de autoria de pensadores tidos como grandes personalidades pelas esquerdas, como os de outros, por vezes, menos lembrados.

Precedentemente à exposição da cuidadosa seleção de textos que integram a coletânea, o organizador detém-se à escrita do texto introdutório, no qual, por meio de uma narrativa bem estruturada, dispõe uma apresentação crítica e meticulosa a respeito dos autores e textos selecionados, inserindo estes últimos no contexto em que foram produzidos. Todavia, convém ressaltar que o organizador não se restringe às produções e aos contributos dos autores dos textos elencados no corpo no livro, efetivando, também, o esforço de perpassar analiticamente por outros pensadores que compuseram o processo de teorização em questão, além de também evidenciar a participação e relevância das organizações políticas, do ambiente acadêmico e das editoras enquanto meios para promoção dos debates e das ideias ao longo do mesmo. Já de início, Pericás possibilita que o leitor se situe satisfatoriamente no que diz respeito ao cenário no qual foram constituídos e difundidos os debates que integram os textos que compõem a coletânea, instigando-o, igualmente, a refletir acerca das continuidades de uma parcela dos aspectos recorrentemente apontada pelos intérpretes destacados.

Como ressaltou Pericás: “O fato é que a palavra ‘revolução’ sempre foi usada de forma indiscriminada no Brasil para as mais diversas situações político-institucionais ou rebeliões populares, incluindo aquelas que assumiam um caráter regional” (p.13). De modo geral, o conjunto da obra traz enquanto contributo as especificidades dos pensamentos de diversos autores que, por meio de influências díspares, dedicaram-se a interpretar a formação histórica nacional e a pensar o marxismo no Brasil, expondo perspectivas, abordagens e proposições variadas, lançando contribuições para pensar-se, teoricamente, a “revolução brasileira”.

A coletânea, que engloba dezenove escritos produzidos em diferentes conjunturas no decurso do período republicano, conta tanto com autores que estiveram mais alinhados à esquerda comunista, quanto aos que vislumbraram outros horizontes políticos. Por seu turno, as avaliações relativas ao quadro nacional, aos diferentes caminhos a serem tomados, às alianças a serem formadas, aos protagonistas e aos espaços e meios de difusão das ideias, reafirmam-se recorrentemente, no corpo dos textos selecionados, enquanto aspectos essenciais para pensar-se um processo revolucionário no Brasil, embora que apresentem-se de maneiras distintas, conforme a elaboração de cada intérprete.

Cabe destacar, no entanto, que embora cada um dos autores elencados na coletânea detenha suas especificidades interpretativas, seus textos foram articulados pelo organizador de modo que se inter-relacionam organicamente, possibilitando uma leitura fluída e bem contextualizada.

O artigo selecionado para dar início à coletânea é de autoria do intelectual comunista Octávio Brandão, cuja produção, inserida em um cenário marcado pelo recente advento da Revolução Russa e pelo movimento tenentista de 1924, coincide com o princípio da interpretação marxista acerca da “revolução brasileira”. É daí em diante, ao compasso da amplificação – e posterior retração – das discussões sobre o assunto, que se dispõem os textos dos demais autores que integram o volume.

Para ilustrar as interpretações que emergiram sob o novo quadro de acontecimentos, na década de 1930, foram selecionados escritos de Luiz Carlos Prestes, Mário Pedrosa, Lívio Xavier e Roberto Sisson. Já para retratar as teorizações produzidas ao longo dos anos de 1940 e de 1950, o livro traz textos de autoria de Caio Prado Júnior, Astrojildo Pereira e Luiz Alberto Moniz Bandeira. A respeito das interpretações que surgem no final daquela década e no início dos anos de 1960, logo após a América Latina fazer-se palco da Revolução Cubana e o tornar-se mais fértil do que nunca a germinação de teorizações por parte dos militantes e intelectuais de esquerda, foram selecionados os artigos produzidos por Leôncio Basbaum, Alberto Passos Guimarães, Ana Montenegro, Nelson Werneck Sodré, Franklin Oliveira e Elias Chaves Neto.

Por sua vez, para ressaltar os debates levantados no contexto do pós-1964, período marcado pela larga repressão ditatorial, foram elegidos escritos de autoria de Luciano Martins, Florestan Fernandes e Carlos Marighella. Sobre os debates empreendidos anos de 1960 e 1970, momento no qual já diminuíam de proporção – especialmente pelo recrudescimento da repressão sobre os militantes e intelectuais politicamente ativos –, constam no livro textos produzidos por Ruy Mauro Marini e Érico Sachs. E, por fim, deparamo-nos com um escrito de autoria de Theotônio dos Santos que, da mesma maneira que simboliza o período de refluxo das discussões, marca o final da coletânea.

Verifica-se, portanto, as interpretações e proposições partidas de diversos pensadores desde o levante tenentista, na década de 1920, até o refluxo dos debates, na de 1980, de modo que se faz evidente a vivacidade da discussão no decorrer de vários anos, mesmo nos períodos nos quais a conjuntura não esteve propícia para o ecoar das teorizações. Contudo, nota-se, igualmente, a diminuição de suas proporções quando, no contexto marcado pelo final da ditadura, militantes e intelectuais de esquerda passam a trilhar caminhos distintos. Posto isso, é passível de se observar o seguimento de uma ordem cronológica no plano de fundo sob o qual se dispõem os textos no livro, o que corrobora para uma compreensão mais detida a respeito da discussão concernente à “revolução brasileira” ao longo do tempo.

É certo que, para além do que pudemos salientar, a coletânea organizada por Luiz Bernardo Pericás é permeada por inúmeros contributos e nuances, que a dimensão de uma resenha não nos possibilitaria desdobrar integralmente.

Em suma, ao trazer de modo articulado e original o debate levantado por uma parcela de respeitáveis pensadores que detiveram-se à análise da revolução no Brasil, Pericás lança uma valorosa contribuição teórica para com o conhecimento e reflexão tanto das interpretações a respeito da formação social brasileira, quanto das proposições para as modificações em sua estrutura. Trata-se, enfim, de uma leitura fundamental para todos aqueles que, independentemente dos fins – sejam políticos ou estritamente intelectuais –, queiram (re)pensar o tema, posto que muitos dos aspectos que compõem as discussões levantadas pelos intérpretes, evidenciados na coletânea, permanecem na ordem do dia.

Dayane Soares da Silva é mestranda pelo Programa de Pós-graduação em História Social da FFLCH-USP